Nuno A. Vieira
Um Dèjá-vu da Vida do Campo
A azáfama da vida agrícola tornou-se esquecida para alguns daqueles que atravessaram a linha do horizonte e se fixaram em novos destinos geográficos e prosseguiram outras experiências profissionais, ou, então, é desconhecida por novas gerações expostas a outras oportunidades e meios modernos de trabalhar a terra. A terceirense Alisalda Pacheco, como resultado de um estágio feito no Museu de Angra e entregue no ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa) em Lisboa, escreveu Terra Lavrada de Trigo numa perspetiva antropológica; o leitor é levado à localidade do Ramo Grande, na Ilha Terceira, (freguesias das Fontinhas, São Brás, Lajes e Vila Nova), para presenciar os diferentes movimentos da faina agrícola da primeira metade do século XX como, na expressão de Vamberto de Freitas, fosse “uma sinédoque de toda a nossa sociedade arquipelágica”. Na minha idade quase octogenária, a leitura de Terra Lavrada de Trigo, foi um dèjá-vu do mundo da lavoura que conheci, em tenra meninice, na Ilha das Flores.
O orgulho primordial do homem do campo era manter a casa cheia de farturas. Segundo Luís da Silveira, pg. 76, o trigo era símbolo de abundância e alegria e, por isso, se espalhava sobre os noivos pelas casas onde passavam.
Com a devida vénia de Alisalda Pacheco, descreverei as diferentes fases do cultivo do trigo e do milho que, num sabor bem terceirense, decorriam em ambiente de cantares, danças, e bailes à antiga.
A sementeira do trigo era feita nos meses de Janeiro e Fevereiro. Quando o trigo tinha um palmo de altura, mondavam-se as ervas daninhas. Para espantar os melros do trigo, usavam-se as matracas, ou, então, espantalhos feitos de trapos. A ceifa do trigo fazia-se a partir de Julho; os proprietários mais abastados pagavam-na com o próprio trigo, o que, por sua vez, proporcionava a alguns a oportunidade de comer pão alvo.
A debulha do trigo, nas primeiras décadas do século XX, fazia-se em eiras (recinto redondo e de terra batida). Os bois, em passo lento, puxavam o trilho à volta da eira. A seguir, com uma forquilha, atirava-se o trigo para o ar para separar a palha. Por fim, o trigo era peneirado numa peneira de junco. – As debulhadoras mecânicas terão sido introduzidas nos fins da década dos anos 30 do século passado. Finalmente, o trigo era seco ao sol, em esteiras de junco, e guardado em sacos do tear.
Os adubos. Inicialmente, as terras eram fertilizadas com estrume de animais, sobras de palha e areia do mar. O lavrador só começou a aceitar o uso de produtos químicos quando se apercebeu de uma melhoria na produção agrícola. Contudo, nessa altura, o dinheiro era escasso. Apenas se tinha o que resultava da venda de cereais e de gado, considerado menos necessário, para pagar os deveres sociais e familiares. Porém, o objetivo principal do lavrador era amealhar o suficiente para comprar mais um pedaço de terra, o que lhe dava prestígio.
As ferramentas, comumente utilizadas no arranjo da terra, eram o arado de madeira, a grade, a charrua, o sachador, e o carro de bois como meio de transporte. Além disso, a enxada, o sacho, o alvião, a forquilha, o balaio, a joeira, e a peneira.
O transporte dos produtos da terra fazia-se em carros de bois, a cavalo, ou a pé. Para facilitar a vida do lavrador havia diferentes tipos de tendas: ferreiros, serralheiros, ferradores, sapateiros, alfaiates, carpinteiro de carros, e tecelões. As casas eram abastecidas com água das fontes e chafarizes. As ribeiras faziam mover os moinhos
A autora nota que nesta época, o lavrador, por um lado, lutava contra a falta de incentivos para o desenvolvimento da lavoura e, por outro lado, sentia-se penalizado pela falta de meios de transporte que permitissem a exportação dos seus produtos.
Duma citação de Luiz da Silva Ribeiro, pg. 75, pode-se deduzir qual era o papel da mulher na vida do campo: “a situação da mulher na família é, entre o povo da Terceira, melhor do que em qualquer outra parte. Ocupa-se no arranjo da casa e na criação dos filhos. Faz a cozinha, coze o pão ao sábado para a semana toda, lava e cuida da roupa, fia, carda, às vezes tece ou borda e, excecionalmente, por ocasião da apanha do milho ou das vindimas, ajuda o homem nos trabalhos do campo”. Militares do Continente, em serviço nos Açores, admiravam-se da proteção que pais e maridos davam à mulher.
Vestuário. A roupa, se utilizável, passava dos mais velhos para os mais novos. De resto, a mulher costurava a sua própria roupa e a dos filhos mais novos. Também remendava e bordava.
Ao lado do trigo, havia a sementeira do milho. Este, que uma vez foi a base da alimentação das pessoas, hoje em dia, destina-se à silagem para alimento do gado. A sementeira tomava lugar nos meses de Abril e Maio. Simultaneamente, semeava-se o feijão, mogangos, e as abóboras. Sachava-se o milho para facilitar o seu crescimento. A colheita era feita nos fins de Setembro, princípios de Outubro e era colocada, a monte, no palheiro, no alpendre ou na loja, à espera da desfolha que era outro motivo de festa – dançava-se ao som das violas da terra e havia cantares ao desafio. As cantorias permaneceram até aos nossos dias.
No serão da desfolha do milho, faziam-se cambolhões, (cambadas) de maçarocas que eram penduradas na burra de milho para consumo durante o ano. Até à década de 50, a desfolha do milho, feita à luz do candeeiro de petróleo, era motivo de solidariedade para a vizinhança. Serviam-se batatas-doces assadas e bolachas caseiras regadas com vinho de cheiro ou um cálice de aguardente.
Do grão de milho, reduzido a farinha, fazia-se pão, papas de milho, e papas grossas. A rama seca do milho servia de alimento para o gado. As barbas de milho eram utilizadas como chá diurético. Com as folhas secas enchiam-se colchões, e os homens ainda as usavam para fazer os seus cigarros.
O livro Terra Lavrada de Trigo, de Alisalda Pacheco, deu-me a agradável oportunidade de voltar a respirar o ar puro do campo, sentir o simples viver do dia-a-dia, e ver o homem na nobre tarefa de cultivar a terra.