Gaspar Frutuoso, um espírito moderno voltado para a experiência – a sua crítica de Platão
Onésimo Teotónio Almeida
No meu recente livro O Século dos Prodígios , procurei demonstrar que os descobrimentos portugueses foram possíveis porque uma plêiade de homens com uma mentalidade voltada para a experiência como fulcral no processo de conhecimento do mundo esteve na base desse colossal empreendimento. Essa atitude foi alimentada pela confirmação, ao longo dos anos, de que a observação e colecção de dados e não os livros dos clássicos são o primeiro e mais vital passo para a aquisição de conhecimento empírico e que é isso que permite depois o aperfeiçoamento tecnológico.
Entre os autores que nesse período marcaram mais significativamente essa etapa, a mais inovadora de sempre da história portuguesa, contam-se Duarte Pacheco Pereira, Pedro Nunes, D. João de Castro, Garcia de Orta e Fernando Oliveira. Referi também entre eles o nome de Gaspar Frutuoso, se bem que não tivesse incluído nenhum capítulo sobre ele . Antes que me acusem de um anacronismo histórico, explico: é óbvio que Gaspar Frutuoso não faz parte do grupo de figuras que influenciou o rumo dos descobrimentos, mas ele insere-se na tradição criada por esse grupo. Foi nesse sentido que inseri Luís de Camões, contemporâneo de Frutoso, e mesmo Garcia de Orta. Foram autores que se deixaram imbuir do novo espírito empírico e se entregaram à cata de elementos que lhes ajudassem a entender o mundo em que viviam, sobretudo o mundo físico. Gaspar Frutuoso nasce precisamente num espaço novo do globo descoberto pelos marinheiros portugueses e escreve quando já um século e meio decorria sobre a chegada dos primeiros habitantes ao arquipélago dos Açores, e herdou naturalmente o novo espírito que então se difundia entre os espíritos mais atentos. No referido livro estudei os exemplos de Camões e de Francisco Sanches, ambos contemporâneos de Gaspar Frutuoso.
São dois os aspectos importantes que Frutuoso revela nas suas Saudades da Terra e que o fazem merecer ser integrado neste conjunto de autores: a sua crítica a Platão sobre a existência da Atlântida e a curiosidade científica que o levou a estudar os fenómenos geológicos e, sobretudo, os vulcânicos nos Açores. Cingir-me-ei aqui apenas ao primeiro deles, integrando-o no grupo de portugueses que, no século XVI, ousou confrontar a autoridade dos clássicos gregos a partir de um ponto de vista inteiramente novo: o da superior importância do critério de verdade com base na evidência empírica.
Natural da Ribeira Grande, S. Miguel, Açores, Frutuoso (1522-1591) estudou em Salamanca, como todos sabemos, mas não me parece que tenha advindo daí a inspiração para essa sua postura e interesses. Por um lado, Salamanca não era, ao tempo, uma universidade voltada para a ciência então nascente aqui e ali, em momentos e lugares dispersos; por outro, os clássicos eram nessa famosa universidade ainda venerados e atentamente comentados, não propriamente objectos de crítica.
Em Portugal, sim, os navegadores portugueses há quase um século vinham criticando os clássicos. Há, todavia, poucos registos de tais críticas e as que nos chegaram surgiram em regra em escritos que só mais tarde foram impressos e viram divulgação, como é o caso de Duarte Pacheco Pereira e de D. João de Castro. Aconteceu o mesmo com a obra de Gaspar Frutuoso, redigida entre 1580 e 1591, mas só divulgada duzentos anos após a sua morte . Contudo, aqui importa apenas apontar o facto de as críticas feitas em Portugal aos clássicos, sobretudo os gregos, circularem apenas entre um grupo restrito de figuras ligadas aos descobrimentos. Se Frutuoso teve acesso a elas ou não, desconhecemos; que tenha estudado Platão em Salamanca, isso parece normalíssimo, se bem que nessa altura fosse Aristóteles o filósofo mais estudado e respeitado. Todavia, ao ler em terras de Espanha sobre a sua República descrita nos Diálogos Timeu e Critias, terá eventualmente reagido com base na sua experiência insular e ter-se-á interrogado: como é que pode ser possível ter existido ali, naquelas ilhas onde nasci e conheço muito bem, esse continente de que fala Platão? É natural que Frutuoso, durante os seus estudos em Salamanca, tenha sido exposto a algumas críticas feitas ao mestre grego, em particular pelos estudiosos espanhóis que achavam estranho ter havido uma tão grande extensão de terra apegada à península ibérica. Mas Frutuoso deve ter-se sentido na posse de muito mais fortes argumentos, pois conhecia a geologia e a vulcanologia das terras que supostamente ficariam no centro da Atlântida. Por isso, ao lermos os argumentos contra a existência de tal continente elaborados por Frutuoso, pressentimos que vários foram herdados, isto é, aprendidos noutros autores; mas alguns, e dos mais importantes, são de sua lavra e construídos com base em evidência empírica por ele coligida, sobretudo nos anos posteriores à sua vida universitária, pois toda a vida, como se pode ver na sua obra, ele se dedicou à observação e à recolha de elementos empíricos sobre a geologia e vulcanologia das suas ilhas, mormente a de S. Miguel.
Antes de prosseguirmos, acho importante deixar claro que não estou a anunciar novidades; apenas a integrar a obra de Frutuoso no conjunto de escritos que ajudam a redireccionar os interesses do mundo ocidental face ao mundo material, uma ao tempo nóvel atitude que irá permitir o aparecimento da ciência moderna.
Muito antes de mim, alguns autores já se dedicaram ao estudo da obra de Frutuoso neste domínio da crítica a Platão e do seu interesse pela geologia e vulcanologia. Será por isso importante referir aqui esses nomes. O primeiro parece ter sido Eugénio Canto e Castro, já em 1890 . Victor Hugo Forjaz, vulcanólogo e professor na Universidade dos Açores, tem chamado a atenção para a importância das passagens de Saudades da Terra sobre geologia e vulcanologia , mas foi sobretudo Manuel Serrano Pinto, Professor no Departamento de Geociências da Universidade de Aveiro, quem se dedicou a uma análise quase exausiva deste tema, sobretudo no artigo “Gaspar Frutuoso, os Açores e a Atlântida de Platão”, publicado em versão portuguesa e inglesa primeiro no Boletim do Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência e da Técnica, da Universidade de Aveiro, em 1998 , e republicado cinco anos mais tarde na revista Açoreana . O Professor Serrano Pinto publicou ainda outros artigos sobre esta temática em revistas portuguesas e estrangeiras, nalguns casos de colaboração com outros autores . Infelizmente o Professor Serrano Pinto já faleceu, como soube quando recentemente procurava contactá-lo a indagar se por acaso teria escrito algo mais sobre o tema. Penitencio-me pelo facto de não ter procurado contactá-lo mais cedo. No entanto, encetei já uma investigação do seu espólio em cata de trabalhos adicionais que eventualmente tivesse em preparação.
Voltemos a Platão: mais uma vez, no contexto internacional, não são os portugueses quem surge como o seu principal crítico. No mundo francófono e anglo-saxónico, o herói é Montaigne, por sinal também contemporâneo de Frutuoso. Montaigne criticou Platão a propósito da existência de canibais .
Não é de crer que Frutuoso tenha conhecido os ensaios de Montaigne. Se o fez, não nos deu disso qualquer sinal. Acrescento, entretanto, que muito embora Montaigne seja considerado um moderno (mais precisamente um pré-moderno), tanto pela sua mundividência como pela sua criação do género “ensaio”, em termos da ideia de experiência ele está mais próximo do uso então tradicional do que no sentido empírico dos navegadores portugueses . No que concerne a crítica a Platão, não há qualquer semelhança com a de Frutuoso pois, no caso do açoriano, trata-se de uma análise crítica pormenorizada e extensa, feita a partir da sua experiência de habitante do meio do Atlântico. Para o demonstrar, nada como enfrentar então aos argumentos de Frutuoso, começando pelos históricos. Serrano Pinto resume-os perfeitamente e cinjo-me apenas a uma paráfrase abreviada, muito embora prefira agrupá-los de forma diferente da por ele elaborada:
1. Na história da Península Ibérica não há memória de qualquer derrota infringida pelos reis da Atlanta;
2. Mais nenhum historiador grego refere a Atlanta. Frutuoso faz um inventário das viagens levadas a cabo por vários navegadores ao longo dos séculos.
3. Não há nenhum registo em qualquer parte do cataclismo que teria destruído esse continente. Certamente haveríamos de encontrar algum documento um registo dessa tragédia.
Os argumentos geográficos sintetizados por Serrano Pinto têm ainda a ver com a história:
1. Navegadores antigos cruzaram o Atlântico e nunca encontraram nenhuma Atlanta. Os navegadores cartagineses, por exemplo, chegaram supostamente à Hispaniola e é possível que tivessem estado no Corvo e não encontraram a Atlanta .
Antes de prosseguirmos, convém lembrar que não há qualquer prova de os cartagineses terem chegado a Hispaniola e a história do Corvo, apesar da referência de Rui de Pina à suposta estátua do Corvo, está muito longe de ser confirmada. Mas adiante. Ouçamos Frutuoso sobre esta questão:
“Logo no ano de quatrocentos e quarenta e cinco antes do nascimento de Nosso Senhor, por mandado dos cartagineses, partiu o capitão Himilcon […]; tornou a Andaluzia […] sem achar ilhas dos Açores pegadas com Portugal, nem sinal disso, nem ver ilha Atlanta, nem ciscalho que ficasse junto do estreito donde havia partido” ; “Hanon […] fez viagem mais comprida […]. Ele tornou a Espanha no ano de quatrocentos e quarenta antes do nascimento de Nosso Senhor, que são dez anos depois que disse que Platão florescia, sem achar junto do estreito, nem de toda aquela costa, ilha Atlanta, nem sinal onde ela estivesse, nem ciscalho que em aquele mar dela ficasse, com diz Platão, por onde parece que não leva razão o que ele desta ilha Atlanta conta.”
[…] E no ano de duzentos, antes da Encarnação de Cristo Nosso Deus, dizem que os romanos mandaram uma armada à Índia […] e se tornaram sem achar estas ilhas dos Açores pegadas com a costa de Portugal ou de Europa, rodeando-a toda até ao cabo de Finisterre, sem fazer tão longo rodeio como fora, se pelas ditas ilhas dos Açores foram.
Daí que Frutuoso conclua peremptório apelando para a evidência com base na experiência:
Pelo que, do que tenho contado, se segue que nunca estas ilhas dos Açores foram pegadas com Portugal, como tem a primeira opinião, nem com ilha Atlanta, que não houve antes nem depois de Platão (como ele diz) que é a segunda opinião, como, pelas histórias contadas atrás e pela experiência que dos mais tempos já tão conhecidos e lembrados temos, tão claro parece.
Passemos então os argumentos que mais nos interessam aqui, os geográficos. O facto de uma Atlântida com as dimensões descritas por Platão não caberem no Atlântico é o primeiro. Convém, todavia, aqui, dar a voz ao próprio Frutuoso e seguir o seu raciocínio. O nosso autor exprime-se sempre em linguagem muito clara e frontal, todavia faz questão de se declarar respeitoso das afirmações de tão importantes autores como Platão:
Mas se me é lícito antre tão delicados pareceres, opiniões estranhas e tão graves autores, cidadãos de Atenas, em meio do suave canto dos brancos cisnes sair eu ao terreiro com rouca voz de negro corvo, e com a minha grosseira e ruda cantiga de pobre e tosca aldeia, e de engenho pouco limado pera altos pontos, e muito moderno e novo pera coisas tão antigas, afirmo que nenhuma cousa destas duas opiniões me pode bem caber nele, nem no entendimento.
De seguida avança afirmando sem rodeios:
Mas o meu parecer é (salvo o melhor juízo) que nunca estas ilhas foram apegadas com a terra firme de Portugal, nem, tão pouco, são parte ou pedaços daquela ilha Atlanta subvertida, ou de Platão fingida, ou mal dele entendida, porque se eu contar, desde o primeiro, todos os reis e governadores que em Espanha foram até ao tempo de Platão, sem se saber nem escrever que algum deles fosse em algum tempo vencido de reis de Atlanta (como Platão conta), bem se seguirá e crerá que, pois, o colhem no que não é, nem foi, nem, como ele diz, houve tal Atlanta, e, mostrando eu que nos mesmos tempos foi navegada a costa de Espanha toda, como agora é pela parte do Ocidente, claro fica destas ilhas dos Açores não haverem sido em algum tempo pegados nela.
Seguem-se duas dúzias de páginas em que o argumento histórico é desenvolvido, terminando com uma afirmação que repete fundamentalmente esse enunciado acima transcrito:
[…] nunca se soube parte de ilha Atlanta, nem escreve nenhum autor dela, nem que reis dela vencessem alguns reis de Espanha, nem que estas ilhas dos Açores estivessem pegadas com a Rocha de Cintra, pois navegavam aquelas nações, acima ditas, a costa de Espanha, da boca do estreito de Gibraltar até Lisboa, e até Cantábria, segundo tenho referido e notado no acima dito dos reis e guerras e sucessos de Espanha, coligido e abreviado do universal e doctíssimo e diligentíssimo cronista, Estêvão de Garibai Cantabro. E não rodeavam tão longo caminho, como fora, se estas ilhas dos Açores estiveram pegadas com a terra de Portugal, como diz a primeira opinião. Nem viam ilha Atlanta junto das Colunas de Hércules, por onde eles passavam, donde começava a mesma Atlanta, de quem dizem ser parte estas ilhas, segundo tem a opinião, fundada no que Platão refere, pelo que nenhuma destas duas opiniões parece verdadeira, nem por si fundamento firme, nem razão provável.
Frutuoso desenvolve depois a sua argumentação aplicando a lógica e cálculos aritméticos para, com base no conhecimento que tem da experiiência e da informação colhida por navegadores que conheciam por experiência o terreno (neste caso, os oceanos), demonstrar a impossibilidade de a Atlântida de Platão exitir de facto. Quer dizer: o ponto de vista de Frutuoso face a Platão é estritamente científico no sentido moderno do termo. Ouçamo-lo:
E se me disserem que estas ilhas são, ou parecem, pedaços de terra, quebrados de outra terra grande (que poderia ser Atlanta), pelas altas rochas que têm em muitas partes como quebradas, a isso respondo que está claro (como se vê nesta ilha de S. Miguel) que, de princípio, junto do mar, eram as fraldas das rochas rasas e quase ao lível (sic) com o mesmo mar e, depois, por incêndios [incêndios são vulcões] que, antigamente, em diversos tempos aconteceram, com que muitos ou quase todos os montes que, então, arrebentaram deitando uns de si pedra de diversas maneiras e terra e cinza e areia e pedra pómes por diversas vezes, se alevantaram e engrossaram as fraldas baixas da terra e fizeram a altura que agora têm, indo quebrando, às vezes, ou com o mar que as comia ou com o peso da pedra e da terra, pela pouca liga que faz antre si a pedra pómes, e, às vezes, com os grandes tremores (que muitos em vários tempos houve nelas), sacudiram de si a pedraria e pedra pomes e cinza e terra que nos cabos, junto ao mar, estava mal grudada e, quebrando e caindo no mar, ficaram as rochas íngremes e talhadas, como agora estão.
Frutuoso prossegue escrevendo em linguagem de geólogo, lembrando ao leitor que se apoia em dados empíricos:
E é de tudo isto bom sinal e testemunho o que se vê claramente nesta ilha de S. Miguel […] E afora estas rochas, que desta dita maneira se fizeram altas e talhadas (e não por se quebrarem de ilha Atlanta, nem de terra firme) […] E como nesta [ilha] se fizeram as rochas altas, íngremes e talhadas, assi se fizeram nas outras ilhas.
CITAR toda a página 291
Mas vamos então ao núcleo central do argumento de Frutuoso:
Diz mais Platão que tão grande era a ilha Atlanta como África e Ásia juntas. E claro está que das Colunas de Hércules, onde ele diz que começava, até a ilha de S. Domingos, onde acabava, é muito menos espaço e mais pequeno que das mesmas Colunas de Hércules, ou da costa ocidental de África, ao cabo da China, que é o fim da Ásia, lá no Oriente, pelo que se vê claramente o contrário de sua opinião, que não pode ser como ele afirma, porque do estreito de Gibraltar, onde estão as Colunas de Hércules, donde ele diz que começava a Atlanta, até a ilha de S. Domingos, onde acabava, são ao mais mil e duzentas; porque de Espanha até Gran Canária há, aí, duzentas e cinquenta, e de Canária até a ilha que se chama Desejada, há, aí, setecentas e cinquenta, e da Desejada até chegar à cidade de S. Domingos são cento e cinquenta; por todas mil e cento e cinquenta ou mil e duzentas léguas, segundo as cartas de marear que agora se têm por melhores e mais emendadas. Mas África e Ásia têm muito mais léguas, porque de Portugal a Goa, que é o nosso porto principal da Índia, há cinco mil léguas, e dali à China há mil e duzentas, e até ao cabo da Terra devem ser muito mais, e ainda que não se conte o caminho, costeando senão por linha direita, é muito mais comprido caminho o de Portugal até à China que mil e duzentas léguas, que ao mais não há do estreito de Gibraltar até a ilha de S Domingos.
Frutuoso prossegue discorrendo contra aqueles que diziam que a extensão da grande Atlanta era de Norte a Sul, da terra dos Bacalhaus ao estreito de Magalhães, e portanto dando razão a Platão. De novo, a sua base de apoio é sempre o conhecimento empírico de que dispõe:
a isto respondo que a terra dos Bacalhaus, que está da banda do nosso Norte, que é o polo Ártico, e a grande terra Austral. Que dizem estar, ou ilhas que estão além do estreito de Magalhães, da parte do polo Antártico, impidem que pudesse ser esta ilha tão grande como Platão afirma. E se ele isto quere dizer e não se houver de entender o que diz em outro algum sentido alegórico ou metafórico, pois não há tanta compridão nem largura neste meio mar como África e Ásia juntas, claro que se vê não ser verdade no sentido literal o que diz Platão. E quem diz e conta, afirmativamente, uma cousa que não se acha ser assi, como esta, também dirá outras do mesmo teor e põem pouco crédito em quantas depois da mesma cousa conta.
A justificação das suas posições é consistente: a evidência empírica é que conduz à verdade. O oposto é a mentira.
Noutra passagem, declara também: “se um cego me ensinar e mostrar caminho certo, tomarei e seguirei de boa vontade (como diz Horácio) seu conselho”.
Vejamos ainda mais esta afirmação que por sinal – e estranhamente – revela que não teria conhecimento directo pelo menos dessas referências de Platão às dimensões da Atlântida:
E se Platão literalmente afirma (o que eu duvido) que era tão grande a Atlanta como África e Ásia juntas, e não houve tal ilha, ou não podia ser tão grande como ele diz, como pelas razões ditas claramente se colige, sendo mentira o que a Platão disseram (entendido no sentido literal), como parece ser, eu não vi nunca mentira tamanha, pois é uma mentira tão grande como África e Ásia.
Gaspar Frutuoso compreende que antes dele ninguém tinha dados seguros para contrariar Platão. Escreve em tom conciliador:
Ainda se Platão não tivera que o Mundo teve princípio e cuidara, como cuidou Aristóteles, que era ab eterno, deste erro pudera persuadir que houvera em algum tempo atrás (de que não houve memória de homens) a ilha Atlanta, porque ninguém, então, lho pudera nem soubera contrariar, pela infinidade de anos em que atrás pudera haver sido o que contara ele e qualquer outro que quisera fingir histórias muito antigas.
Frutuoso entrevê a possibilidade de “fingimento” e de criação metafórica da parte de Platão (e nisto segue autores que tinham levantado essa hipótese) que teria criado a Atlântida por razões que têm a ver com as suas ideias filosóficas:
Citar primeiro “E muitos se enganam” p. 282)
DEPOIS:
Não quero nisto dizer que Platão quisesse fingir esta história da Atlanta, senão que a contou como a ouviu a alguns, a que deu mais crédito do necessário, donde parece que a veio fingir, como as suas ideas (que dele dizem), ou quis dar, debaixo desta história da Atlanta e do sentido analógico dela, alguma doutrina e entender outra cousa, como também dá a entender Marsílio Fiscino, florentino, no argumento que faz ao mesmo Diálogo, de Platão, da Atlanta.
Hoje o consenso geral é que de facto Platão imaginou uma república perfeita (se acreditou nela ou não, é outro assunto) para dar aos gregos um exemplo vivo de como deveria ser governada uma sociedade. Assim, a Atlântida funcionaria para a filosofia política como o mundo real, o perfeito, em inteira coerência com a sua ontologia.
Gaspar Frutuoso ama a verdade com base na evidência empírica e defende-a com garra, mas mantém ao mesmo tempo uma atitude notavelmente tolerante. Escreve ele depois de resumir ainda uma vez mais sua tese:
Mas nem com isso quero obrigar os entendimentos doutros (pois Deus os fez livres) a que entendam o mesmo e digam o que eu digo. Entenda e diga cada um o que quiser, que eu isto entendo e afirmo, enquanto não vejo outras melhores razões que me convençam meu entendimento no que agora disto alcanço saber.
Apesar disso, Frutuoso cuida de se proteger de uma eventual reacção da Igreja:
Mas sometendo-me no dito e por dizer (como obediente filho) à correição, censura, amparo e proteição da Santa Igreja, nossa piedosa Mãe e verdadeira Mestra, e de seus católicos ministros, e a qualquer parecer que, melhor que eu, acertar pode, digo também o meu, que não valha nada, se não presta.
Frutuoso estava longe de ter a coragem que Galileu iria demonstrar três décadas mais tarde proclamando impiedosamente E pur si muove!, desafiando os cardeais da toda-poderosa Cúria Romana e aceitando a condenação sem vacilar na sua firmeza apoiada em dados empíricos com o auxílio do seu telescópio.
Poderíamos prosseguir na nossa viagem pela obra de Gaspar Frutuoso em cata de passagens que revelam um espírito moderno (ele usa o termo) no pensar e no agir, pois nem chegámos a entrar no domínio da vulcanologia, essa área em que ele regista observações pela primeira vez escritas em toda a história da ciência. A recolha do essencial desses dados já foi feita pelo referido Manuel Serrano Pinto, contudo acrescentarei aqui apenas uma referência específica à atitude experimental de Frutuoso, que por sua vez refere idêntico posicionamento da parte de ilhéus seus patrícios e contemporâneos que procuraram resolver problemas práticos impostos pela actividade vulcânica na ilha, como se pode ver nesta passagem em que relata um experimento em agricultura:
o dito Manuel Vieira, o primeiro ano seguinte de 1564, depois do terramoto, semeou todas as cousas que pôde, trigo cevada, centeio, abóboras, junça, chícaros, lentilhas e todos os mais legumes sobre cinzeiro e pedra pómes, e tudo nasceu bem; mas vindo o tempo quente, se tornou amarelo e secou, por ser a pedra pómes sêca e não ter virtude para poder crear, por lhe faltar humor. O que vendo êle, determinou de lavrar a terra, onde havia mais pouca altura de pedra pómes e cinzeiro, e rompel-a bem alta, calabreada com o arado grande e três juntas de bois, para que chegasse á terra boa, por vêr se envôlta com a cinza e pedra pómes podia frutificar. A qual experiência, que fez o terceiro ano seguinte, de sessenta e cinco, lhe aproveitou, porque onde chegava o arado á terra boa deu muito pão, onde viu que a raiz do trigo ia abaixo, pela pedra pómes demovida com o arado, três palmos e meio buscar a terra bôa e por isso frutificava; e houve bom pão n’aquêle ano.
Frutuoso relata de seguida outras experiências no domínio da agricultura que provocaram diálogos em cata de soluções, concluindo sempre no mesmo tom de louvor da experiência:
O que tudo se deve ao dito Manuel Vieira, primeiro inventor e executor d’este bem e proveito, porque se ele não dera este remédio que Deus lhe ensinou, não sei qual houvera de ter toda a gente d’esta ilha, da banda do norte, senão despovoar-se esta parte toda de terras, onde caiu a pedra pómes e cinzeiro, e irem todos viver da banda do sul, ou desterrar-se a outras terras.
Fica mais do que claro que Gaspar Frutuoso se insere na plêiade de autores portugueses dos séculos XV e XVI que se abriram ao mundo com um novo olhar procurando entendê-lo seguindo as luzes que vêem, pelos olhos sobretudo, que recebem a informação colhida ao seu redor e provocam diálogos com a razão em busca do sentido e significado desses dados coligidos.
Infelizmente esta faceta fundamental, inteiramente moderna, do trabalho de Frutuoso é praticamente desconhecida em Portugal, para não falar já do resto do mundo. Apenas o falecido investigador Manuel Serrano Pinto fez algo nesse sentido e aproveito aqui para evocar, muito grato, a sua memória. Mas importa traduzir para inglês e divulgar entre os historiadores da ciência interessados neste período chamado pré-moderno (em inglês early modern) estas passagens de Saudades da Terra, organizando por exemplo um pequeno volume com estas passagens traduzidas, e precedendo-as de uma introdução biográfica de Gaspar Frutuoso, para que ele figure definitivamente no mapa da história da ciência .
Gostaria, entretanto, de acrescentar uma nota final.
Todos os anos lecciono um seminário interdisciplinar sobre a aurora da modernidade. Os alunos lêem escritos de autores portugueses de Quinhentos (em tradução), lado a lado com outros da Europa Ocidental do mesmo período. Um dos autores da lista de leituras é Gaspar Frutuoso.
No final do seminário deste ano, um aluno interveio num dos nossos diálogos na aula para contar que nesse mesmo semestre estava também a fazer, juntamente com outro colega presente na sala, um curso de Geologia e, naquela semana, tinham lido excertos do livro Theory of the Earth, do escocês James Hutton (1726-1797), considerado o pai da Geologia por ter desenvolvido ideias sobre o modo como as rochas são formadas demonstrando que a terra não é estática, pois muda ao longo dos tempos . Ao ouvirem o seu professor enaltecer o pioneirismo do escocês, os meus alunos Shawn Miller e Benny Smith tiveram a sua sensação de déjà vu, pois para eles tinha ficado claro que as ideias centrais de Hutton estavam já contidas nos escritos de Gaspar Frutuoso duzentos anos antes.
Este é simplemente mais um caso – há muitos outros e o Professor Luís de Albuquerque, que foi quem há 36 anos me trouxe pela primeira vez a esta Academia, identificou vários – em que uma descoberta, ou um registo inovador português, ficou enterrado porque, ou não foi publicado, ou nunca foi conhecido fora de Portugal, acabando por ser reinventado séculos mais tarde. Neste caso, como os meus alunos apontaram, foi dois séculos depois.
Não é politicamente correcto hoje trabalhar neste domínio pelas razões que todos bem conhecemos. No caso deste meu notável patrício, natural da vila, sede de concelho, aonde em criança eu tive de me deslocar para fazer o meu exame da 4ª classe – hoje cidade da Ribeira Grande – estou inteiramente à vontade. Gaspar Frutuoso não foi nenhum colonizador e não consta que tivesse tido escravos. Foi um estudioso, profundamente curioso que se dedicou a estudar a história da sua gente – os Açores – e da sua terra, sempre com um olhar genuinamente empírico. Estava diante de novidades que precisavam de ser entendidas e empenhou-se profundamente no seu estudo. Quase desconhecido fora dos Açores, oxalá que esta minha charla ajude a tornar mais conhecida a sua obra.