Do Passado ao Futuro:
O Centenário da Rádio Portuguesa na Califórnia
Quando o coração dita…
Quadras ao microfone.
Arthur V. Ávila
Rimas de Imigrante (versos para a rádio)
Tinha eu 10 anos de idade, estávamos no último domingo do mês de outubro de 1968, havia chegado à Califórnia, com os meus pais e irmão, há 2 dias. Eram seis horas da tarde! Meus tios ligaram a rádio e tínhamos de nos sentar na sala, porque ia para o ar o programa do Senhor Joaquim e da Dona Amélia: Ecos do Vale. Tinha sido este casal, segundo nos informara meu tio, que nos tinha ajudado com a documentação para chegarmos à Terra Prometida. Meu pai tinha-lhes trazido uma oferta dos Açores. E iam falar de nós! Recordo-me, vivamente, de ficar encantado com o programa de rádio do casal Morisson. Num português puro, com uma dição perfeita, falavam de negócios que serviam a comunidade, de festas que iam acontecer, de “leitarias” que precisavam de ordenhadores de vacas, de portugueses que festejavam os seus aniversários, e a meio do programa, fizeram uma saudação (com direito a música exclusiva) à família Borges que tinha acabado de chegar da Praia da Vitória, ilha Terceira, para tentar a sua sorte na grande América. Eramos nós. Dois dias depois de chegar aos Estados Unidos, na inocência dos meus 10 anos, apaixonei-me pela rádio em língua portuguesa na Califórnia. Nem tão pouco sabia que em 1968, a rádio em língua portuguesa já tinha 48 anos de existência.
A história da presença portuguesa na rádio da Califórnia não pode ser contada num mero texto. Merece um livro, ou dois. Porém, é injusto que se passe esta data histórica sem nos debruçarmos sobre um dos mais importantes elos que a comunidade da Califórnia teve durante os últimos 100 anos. A pesquisa de Eduardo Mayone Dias, a quem devemos a história da comunidade portuguesa na Califórnia e no Havai, publicada em livros e ensaios, certifica-nos que o primeiro programa de rádio em língua portuguesa na califórnia aconteceu a 10 de junho de 1920. Estamos a comemorar o centenário do órgão da comunicação social mais popular na nossa comunidade, o qual tem uma riquíssima história. Há 100 anos, na segunda quinta-feira do mês de junho, na estação de rádio KGBM, de Modesto/Stockton, no Vale de São Joaquim, nascia pela mão de José Vitorino, emigrante da ilha Terceira, o programa semanal, Vasco da Gama. A rádio dava os seus primeiros passos nos Estados Unidos antes de se começar os passos significativos da rádio em Portugal, ou seja três anos antes de 1923, quando é criada em Lisboa a Sociedade Portuguesa de Amadores de Telefonia Sem Fios, e cinco anos antes de a 25 de outubro de 1925 começar pelas mãos de Nunes dos Santos a CTI-AA, dada como a primeira estação de rádio em Portugal. José Vitorino, que não sabia ler ou escrever, segundo uma entrevista de Frank Mendonça (um radialista muito popular durante várias décadas, também no Vale de São Joaquim) a Euclides Álvares, dada há mais de 40 anos, começou o primeiro programa de rádio em língua portuguesa na Califórnia, e que se saiba, nos Estados Unidos. E praticamente uma década antes das primeiras experiências com a rádio nos Açores. Em 1928-29 em Ponta Delgada e em 1933 na Terceira, segundo as informações dadas num excelente artigo escrito por José Andrade, há uns anos sobre os 75 anos da rádio no arquipélago.
Em 1930, tal como nos relata o professor Emérito na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), aparece outro pioneiro, Arthur Vieira Ávila, natural das Lajes do Pico. Havia emigrado em 1909 e já tinha fundado, o primeiro jornal português no Vale de São Joaquim, que chegou a ser sediado em Tulare, o Lavrador Português. Nesse ano, cinco anos antes do estabelecimento da atual RDP (antiga emissora nacional) e uma década depois do começo do programa de José Vitorino, coadjuvado pela sua esposa, Celeste (Rosinha) Ávila, Arthur Ávila começou o primeiro programa de rádio diário (de segunda a sexta) na Califórnia, Castelos Românticos, emitido a partir da cidade de Oakland. A década de 1930 foi fértil para a rádio portuguesa na Califórnia com o aparecimento de outros programas, alguns com vida efémera, como o programa Voz dos Açores, também diário, começado em Tulare por Gus (Gustavo) Simas, com raízes na ilha do Pico. Em 1937, Inácio e Margarida dos Santos (ele de Portugal continental e ela de São Miguel) lançaram o programa Portugal, o qual continuou com transmissão ininterrupta (em 1975 transferido para Joe Silva) durante 60 anos. Miguel Canto e Castro, a 2 de julho de 1961 começou o programa Saudades da Nossa Terra, que ainda hoje é transmitido semanalmente (aos sábados das 10h00 às 12h00 na www.radioportugalusa.com). É neste momento o mais antigo programa de rádio em língua portuguesa, existente na América do Norte, com transmissão incessante há 59 anos.
Durante as décadas de 1960 e 70, (particularmente com a emigração pós-Capelinhos) foram inúmeros os programas de rádio em língua portuguesa que viram a luz do dia na Califórnia. Há nomes que apesar da distância no tempo ainda são sonantes na comunidade, particularmente na faixa etária com mais de 50 anos de idade, porque, ou foram criados com alguns destes nomes, ou os pais falaram-lhes deles. Agnelo Clementino, Frank Mendonça, Arnaldo Gonçalves, Higino Costa, Camilo Melo, Inácio dos Santos, Francisco e Josefina Canto e Castro, Joaquim e Amélia Morrison, Mimi Dias, Ana Calado, António Carvalho, George Ázera, Maria Cabral, Frank Dias, Idalina Mello, Joaquim Correia Sr., Aires Medeiros, Paulo Goulart, Tony Freitas, Casey Santos, e o célebre Joaquim Esteves, entre vários outros. Há ainda nomes que ainda estão na rádio, ou que há anos a deixaram, mas são iconográficos na nossa comunidade: Lúcia Noia, Joe Silva, Euclides Álvares, Osvaldo Palhinha, João Manuel Dias, Eduardo Paim, Vital Marcelino, João Cardadeiro, João e Ana Maria Morrison, Maria Fernanda Simões, Paulo Silva, José Dias, Vital Marcelino, Frank Serpa, Manuel Pires, entre muitos outros. Em 1977, ainda com 18 anos, e depois de substituir um amigo meu numas emissões (quando este foi a Portugal) também me aventurei. Com toda a ingenuidade dos 18 anos, num programa de rádio em língua portuguesa, que se chamava A Voz do Emigrante Português. E confesso, publicamente, que quando acabei a primeira emissão, que teve direito a bênção de padre, fiquei com a sensação de que talvez tivesse cometido o pior pecado da minha, até então curta vida. Daí que tivesse sido muito bom receber um telefonema do veterano Joaquim Morrison que me deu elogio imerecido e me encorajou a continuar.
Aliás, os nomes dos programas de rádio, hoje quase todos inexistentes continham uma grande dose de romantismo. Vejamos: Aurora de Portugal, Portugal de Hoje, Sonhos de Portugal, Saudade de Portugal, Memórias de Portugal e Açores, Portugal Terra de Fé, Amor da Pátria, Lembrando Portugal, Jardim dos Açores, Pérolas do Atlântico, Sonhos de Portugal, Ecos Açorianos, Ecos Portugueses, Ecos dos Açores, Ecos do Vale, Programa Portugal, Melodias de Portugal, Portugal na Califórnia, Recordações de Portugal, Recorda é Viver, Saudades dos Açores, Voz da Saudade, Voz da Lusitânia, Sol de Portugal, Portugal Novo, Saudades na Minha Terra, Hora Portuguesa, são alguns exemplos das centenas de programas de rádio, alguns com nomes repetidos que fizeram parte desta história. Em 1979, há 42 anos, existiam 29 programas de rádio no Vale de San Joaquim, mais de uma dúzia na zona da baía de São Francisco/São Jose e perto meia dúzia no sul da Califórnia e na zona a norte de São Francisco. Perto de meia centena de programas de rádio em todo o estado que nos davam uma multiplicidade de vozes e que foram, em grande parte, os grandes responsáveis pela comunidade que se construiu.
Em 1974 foi inaugurada a KRVE, projeto de três emigrantes: José Rosa, do Faial, Batista Vieira de São Jorge e o lendário Joaquim Esteves da Terceira. Na década de 1980, quando Joaquim Esteves abandonou a empresa, Batista Vieira, empresário de sucesso, dono de várias estações (duas das quais ainda hoje transmitem em português) dois locutores profissionais, José João Encarnação e Mário Vargas, e mais tarde Tito Rebelo, seguindo-se vários outros profissionais, como Filomena Rocha. Em 1982, tive oportunidade de formar em Visalia (cidade junto a Tulare), com Joaquim Correia Jr. e a presença do locutor recentemente emigrado dos Açores, Henrique Dédalo, a primeira estação de rádio em língua portuguesa a transmitir 24 horas por dia no estado da Califórnia, que Mayone Dias, generosamente, descreveu nos seguintes termos: “a novidade do seu carácter técnico – o circuito fechado – a amplitude e variedade da sua programação, o dinamismo dos seus locutores e o seu alto nível linguístico que passou a oferecer fazem verdadeiramente honra a uma rádio moderna e às capacidades criativas dos três homens que a lançaram.”
Hoje a rádio em língua portuguesa é muito diferente. Com as rádios online e os podcasts, assim como uma comunidade que fala português bastante envelhecida, a rádio já não é a mesma, o que se entende, perfeitamente. Há uma reflexão a fazer-se sobre o futuro da rádio ao serviço da comunidade da Califórnia. Será em inglês? Terá outra dinâmica? Estará somente nas novas tecnologias? Debater estas e outras questões, enquanto se regista a história deste centenário, é um dos objetivos do Portuguese Beyond Borders Project (PBBI) da Universidade Estadual da Califórnia em Fresno. É que este centenário precisa, com urgência, de ser comemorado como forma de se registar o passado, de se celebrar no presente os feitos destes pioneiros, e os seus persecutórios, e de se projetar o futuro. Num momento em que as novas gerações começam, e ainda bem, a gerir a nossa vida comunitária na Califórnia, é imperativo que conheçam o seu passado, e a rádio teve um papel predominante na orquestração desse passado. Como é dito em inglês: estamos aqui sobre os ombros de alguém, na realidade a comunidade portuguesa, quase toda de origem açoriana na Califórnia só é a mesma comunidade graças ao pioneirismo da rádio cujo centenário celebramos.
No livro Miscelânea L.U.S.A.landesa, Mayone, ao dissertar sobre a rádio portuguesa da Califórnia, escreve: “são eles dignos da nossa admiração pelo muito que têm oferecido e pelo seu gigantesco esforço no sentido de fazer reencontrar o emigrante com as suas raízes e de o auxiliar a articular a sua vida longe da sua terra natal.”
Estamos conscientes que essa não é a comunidade de hoje, mas esse passado, essa comunidade de ontem tem de ser reconhecida, comemorada e compreendida, se queremos ter comunidade, amanhã.