Mensagem: entre Georges Sorel e D. Sebastião
Roberto Rolandone (*)
Almeida, Onésimo Teotónio (2014). Pessoa, Portugal e o Futuro. Prefácio de
George Monteiro. Lisboa: Gradiva, 335p.
Onésimo Teotónio Almeida defendeu sempre que, para identificar o sistema de ideias, valores e princípios que definem a obra Mensagem (1934), é fundamental ter em conta tudo o que Fernando Pessoa escreveu sobre ela, sobre Portugal e sobre a política, enquadrando todos esses elementos no plano mais vasto da mundividência geral do autor. As concepções estéticas de Pessoa, as suas ideias de mito e de verdade, as suas opiniões sobre a função do poeta e da poesia na sociedade, representam factores que não podem ser dissociados da obra, sob pena de uma sua leitura necessariamente incompleta.
Pessoa, Portugal e o Futuro, o último livro de Onésimo Almeida, consegue a mais plena realização de quanto foi por ele defendido ao longo dos seus estudos sobre a ideologia subjacente à Mensagem de Fernando Pessoa. Segundo a definição do autor, o livro apresenta-se como um “conjunto de
ensaios” (2014: 21), uma forma que parece inevitável para a abordagem dum assunto tão estructuralmente complexo e com tantos níveis de significado diferentes. Escritos no decorrer de quase trinta anos, os ensaios aqui reunidos propõem uma leitura extremamente lúcida, coerente e amplamente documentada do paradigma cultural em que surgiu Mensagem. O raciocínio de Almeida procede juntando com grande perícia as inúmeras peças que compõem o puzzle do projecto
literário arquitectado por Fernando Pessoa, demonstrando que o poeta, através os escritos sobre a sua obra e os seus planos, deixou explícitas as suas intenções. É um facto que Pessoa, provavelmente mais do que qualquer outro escritor, escreveu muito sobre si mesmo e sobre as razões da sua obra, às vezes de forma contraditória mas, como argumenta Almeida, nunca ou raramente afirmando os contrários.
Mensagem, desde a sua primeira publicação, foi objecto de interpretações muito diferentes: foi julgada como obra política, como obra esotérica, como obra litúrgica, messiânica, mítica. O debate encontra-se ainda aberto e, a 80 anos da editio princeps, está longe de gerar uma tese que conquiste a aprovação geral do mundo académico.
A tese que emerge do livro Pessoa, Portugal e o Futuro é, sem dúvida alguma, uma das mais abundantemente comprovadas pelos escritos de Fernando Pessoa até agora conhecidos. A análise de Almeida demonstra como Pessoa, a partir do seu regresso a Portugal, ficou obcecado com a situação e o destino do País, e já antes de 1910 começou a projectar vários planos literários para despertar Portugal da apatia em que estava envolto. Pessoa tencionava construir um grande mito nacional, desprovido de elementos alheios e de influências estrangeiras, cuja força animasse a alma portuguesa. O mito sebastianista oferecia essa possibilidade, mas Pessoa não se limitou a recuperá-lo: renovou-o.
O estudo de Almeida encontra nesse ponto uma das suas maiores qualidades. Vários estudiosos reconheceram o carácter mítico da Mensagem e dos escritos pessoanos sobre o sebastianismo e o Quinto Império, mas qual era a ideia de mito de Fernando Pessoa? De onde terá o poeta recebido a noção de que o mito podia provocar um ressurgimento tão poderoso?
Como revelam os seis ensaios publicados na segunda parte deste livro, Almeida encontrou consonâncias significativas entre a concepção de mito em Georges Sorel e o mito sebastianista de Fernando Pessoa. Na organização teórica de Sorel, o mito é uma construção racional, necessária para sair duma época de crise e de imobilidade; para se tornar um acto formativo, o mito deve ter raízes
populares, deve ser descrito em termos vagos estimulando os sentimentos das pessoas e deve ser projectado no futuro. Os numerosos documentos citados por Almeida atestam que todas essas características estão presentes no mito elaborado por Pessoa. A proposta de esse mito ser uma construção racional com o objectivo de regenerar Portugal esclarece afirmações aparentemente contraditórias do poeta, como aquela referida numa carta enviada a Adolfo Casais Monteiro onde ele se define “sebastianista racional” (Cartas entre Fernando Pessoa e os Directores da Presença, 1998: 251). Essa ideia de mito como construção dirigida à mobilização das pessoas num futuro iminente resulta, na análise de Almeida, perfeitamente compatível com um outro aspecto do pensamento de Fernando Pessoa: a sua concepção da verdade.
Almeida destina um ensaio de Pessoa, Portugal e o Futuro à demonstração de que Pessoa conhecia a teoria filosófica pragmatista que se articulou por meio dos escritos de William James e de Charles Sanders Peirce, entre outros, no final do século XIX. Os pragmatistas americanos rejeitavam a teoria da verdade como correspondência com a realidade, afirmando o que definiam como vontade de
acreditar: o que é fundamental para estabelecer que é a verdade não é o conhecimento mas a acção e, ainda mais, a atitude do homem relativamente ás questões essenciais do pensamento. Pessoa, nesta linha, sustenta que o homem tem de escolher a disposição mental mais favorável, construindo o conceito de verdade mais vantajoso para si.
O objectivo do projecto literário que encontra o seu cume estético na obra Mensagem era, segundo as vastas argumentações de Onésimo Teotónio Almeida, a tentativa de edificar um devir melhor para Portugal através da elaboração dum mito nacional.
Os doze ensaios reunidos nas três partes de Pessoa, Portugal e o Futuro constituem uma referência fundamental não só para quem se interessa na atitude sebastianista de Fernando Pessoa e na ideologia que sustém Mensagem mas, mais abrangentemente, para todos os que procuram reconstruir os elementos que caracterizam a mundividência do poeta português.
(*) Centro Estudos Comparatistas (CEC), Universidade de Lisboa. Rolandone Mensagem
Pessoa Plural: 5 (P./Spring 2014)