Padre António Rego: um livro e uma data
– Incuravelmente ilhéu –
Aqui, nesta Matriz, carregada de história e prenhe de futuro, aqui com António Rego, padre há 50 anos, neste Templo ordenado e hoje connosco em mais uma aurora de juventude, faltam-me as palavras, embora delas precise para este momento. Mas, perante este Homem, “incuravelmente ilhéu”, que bom seria agora calar-me, saltar no tempo e escutar apenas este som: o som do Victoire: de David Julien! No majestoso órgão desta Igreja, interpretado pela sua organista titular, Ana Paula Andrade.
Sim, “Hoje é Domingo”! Porque todos os dias são Domingo! Mas este “Hoje é Domingo”, que assim começava, nas tardes de cada Domingo de Angra, no Rádio Clube de Angra, fazia parar a cidade e estendeu-se como sopro de espírito, a todos os Açores aonde chegavam as ondas da Voz da Terceira. Era o “Vitória” o grande grito de júbilo pelo Concílio sonhado, fresco e vivido por tantos, no meio de tanta resistência ao que era novo, ao que era diferente. António Rego e a sua equipa, depois do toque renovador no jornal A UNIÃO, dava assim início à saga única de um padre jornalista quando muitos se interrogavam se um jornalista podia ser padre. E nunca mais parou. “Nota do Dia”, “Meditando”, Diálogo com os que sofrem”, “Esquema XIII”, “Verdade e Vida”, “Andar faz Caminho”, “Toda a Gente é Pessoa”, “ O Homem sem Tempo”, “Alfa e Omega”, “70×7”, “Palavra entre Palavras”, “Reflexo”, “Oitavo Dia”. Colunas de jornais, e programas de rádio e Televisão.
Também eu, Padre António Rego, nunca os tinha ouvido juntos. Li-os, embevecido, neste livro “A Ilha e o Verbo” – Dos Vulcões da Atlântida à Galáxia Digital que em boa hora Paulo Rocha, outro grande comunicador e voz autorizada no jornalismo da área religiosa, fez editar, nessa grande entrevista onde, certamente não cabe uma vida como a sua, mas cabem tantas vidas que marcou nestes 50 anos, principalmente porque me tocou interiormente ouvi-lo dizer que dentro das suas preferências pessoais, “podia falar do tempo que estive a com a tribo indígena Yanomani, ou das visitas a mosteiros contemplativos. Mas, o mais emocionante foi contactar com as pequeninas comunidades de cristãos que estão escondidas, perdidas. Trazê-las para os media, rádio e televisão, no fundo é apregoar um Evangelho que está a ser vivido de forma humilde e discreta, mas que tem um valor extraordinário para a Evangelização de hoje”.
A Fé ligada ao Testemunho
Este livro insere-se na grande linha de renovação que o padre António Rego assimila e vive, dizendo a Igreja e a fé de forma clara, ligada ao testemunho e à realidade. E acrescenta: Também me ressentia de expressões muito moralistas de a Igreja se dizer. O que chegava ao Povo era a moral, os deveres, não a essência do amor e a bondade de Deus”. Aqui se inere o livro “Quando a Igreja desceu à Terra”.
Magníficas as páginas – e são muitas – dedicadas à entrevista sugestivamente intitulada, “incuravelmente Ilhéu”, porque nas pontas dos pés de qualquer ilha avista-se a outra ilha. O mar não corta infinitos, mesmo quando alteroso. Nunca nos cerca. É uma imensa porta.
Mas afinal, quem é este Ilhéu que domina a Palavra e vive a ilha mesmo nos horizontes mais distantes, mesmo nos tempos mais diferentes?
Capelense de gema, cujo mar conhece como poucos e regista sempre com entusiasmo crescente, a espingarda de mergulho repousa a maior parte do tempo nas memórias duma parede, tem na sua grande família, o seu outro arquipélago. Nas Capelas faz o seu ensino primário e em 1952 entra no Seminário de Angra: Foi convidado a ir para um seminário americano, de uma diocese que custeava os estudos dos alunos, mas o pai disse que “o meu filho não está à venda”. Brilha nas Letras, numa altura em que como ele próprio diz, havia uma grande distinção entre ciências e Letras. Escreve o seu primeiro artigo no Semanário a Ilha de Ponta Delgada, e na Santa Casa Mimosa que agora fez 150 anos, vive o dia-a-dia de tantos jovens de então, no estudo, no teatro, na Música, no futebol, no Escutismo e em muitas outras actividades. Ordena-se em 1964 nesta Matriz de São Sebastião e celebra Misa Nova, ainda em latim, – decorriam os trabalhos conciliares que haveriam de adoptar o vernáculo na liturgia, – na sua Terra, na Igreja de Nossa Senhora da Apresentação.
O peso de uma “Guia de Marcha”
Depois, depois foi Angra, mais três anos, a paróquia, o jornal e a Rádio. Ondas e mais ondas, quando muitos não queriam ondas. Se calhar por isso, e embrulhada em outras rendas, um dia chegou, pelas mãos do prelado de então aquela “guia de marcha” que marcou a vida do padre Rego e a da comunicação social portuguesa em assuntos religiosos. Foi a Renascença, a RDP, a RTP e a TVI. Foi o curso na Pierre Babin em Lyon e depois foi este mundo, o nosso que se tornou dos outros e o dos outros que se tornou nosso, pela voz e pelo talento do Capelense que nunca se confinou a um estúdio, mas que fez do mundo o seu estúdio preferido.
E aqui, não resisto a citar outro grande comunicador açoriano, noutra área do Pensamento, o Filósofo e escritor, Onésimo Almeida, também formado na grande Escola do Seminário de Angra.: Este A Ilha e o Verbo traz 24 páginas de fotos ilustrando a vida do padre Rego. Uma delas tem por legenda “Entrevista a D. Helder Câmara, 1985”. Não diz onde, mas é em Providence, Rhode Island. E tem a sua história:
Um técnico que faz perguntas
Aconteceu o Padre Rego estar na Costa Leste quando D. Hélder Câmara, na altura creio que já aposentado, passava uma breve temporada em Providence. Fora a convite não da Diocese Católica, mas da Igreja Episcopal, fazer umas palestras aos membros. E ficou hospedado em casa do Bispo George Hunt, que fica mesmo situada dentro do campus da Brown, perto da casa do Reitor da universidade. Eu tinha conseguido autorização de entrevistá-lo para o meu programa de TV e aconteceu o padre Rego saber. Expressou gosto em ir também gravar uma entrevista para levar consigo, se eu não me importasse. Eu, claro, de modo nenhum. Mas o Rego fez questão: Vou de teu técnico. E foi. Entrámos no sumptuoso interior da bela casa com magníficos revestimentos em talha de madeira. Abriu-nos a porta o próprio bispo, em mangas de camisa. Saudei-o tratando-o por Bishop Hunt e ele logo: Call me George! E lá gravámos a entrevista: eu de entrevistador, o Rego de técnico. Mas depois conversámos um pouco mais e D. Hélder manifestou-se surpreendido com a qualidade das perguntas que aquele técnico lhe fazia. O Rego quis, no entanto, que ele pensasse que existiam assim técnicos portugueses bem informados em questões religiosas.
Humor e humanismo
Este fino humor é, aliás uma das características do Padre António Rego, cujas vestes de Cónego, do Cabido da Sé Patriarcal nunca enfaixaram a sua boa disposição e o seu espírito irreverente e alegre. Por isso mesmo, é ele que diz no magnífico livro A Ilha e o Verbo que “nunca me partiram nenhuma costela nos abraços de parabéns por algumas coisas que fiz”…
E já que falei do Onésimo Teotónio Almeida, foi a ele mesmo que António Rego respondeu um dia com rasgo de humor a uma abraço e à observação de que estava a sair da forma esbelta da juventude para os arredondamentos físicos próprios da idade. Por outras palavras: engordar…. E António Rego, sem se desmanchar nada: “Vamos dilatando a Fé e o Império”….<
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Maneira açoriana de ser português
Para além da entrevista conduzida de forma extraordinária por Paulo Rocha, o responsável pelo 70×7 na RTP, este A Ilha e o Verbo inclui um carinhoso prefácio de D. Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa que merece ser lido e que entre muitas outras coisas fala do Cónego António Rego que tem “aquele maneira açoriana de ser português, homem do mar em qualquer praia que chegue, usando os meios mais sofisticados do modo mais natural. Por isso terá os auditórios que quiser porque todos queremos ser tratados como pessoas entre pessoas – isto mesmo que ele sabe ser e fazer ser, tão espontaneamente”.
Resta-me agradecer ao meu querido amigo Padre Nemésio Medeiros, Pároco desta Matriz de São Sebastião, este honroso convite. Senti-me tão pequenino, (eu que estava no meu quinto ano quando o Padre Rego foi ordenado), mas ao mesmo tempo muito feliz por poder aqui, mesmo com as minhas limitações, deixar este abraço ao Padre António Rego, por estes 50 anos de vida sacerdotal e pelo livro que me deu dias de profundo deleite e reflexão, pedindo-lhe que transmita ao seu autor e condutor da entrevista, este meu sentimento de gratidão. Porque, se o Espírito pairava nas águas, Palavras como as que o livro encerra são verdadeiro mar que nos une na mesma Fé no Deus em que acreditamos e no mundo que queremos melhor. Obrigado!
Santos Narciso
Nota: Texto lido na apresentação do Livro “A Ilha e o Verbo”, no dia 10 de Julho, na Igreja Matriz de Ponta Delgada, por ocasião da conferência de abertura das festas Do Espírito Santo de Ponta Delgada, proferida pelo Cónego António Rego, que ali foi homenageado pelos seus 50 anos de sacerdócio.