SONO
Mário T Cabral,
Para onde vai uma pessoa quando dorme? Ou seja: a mente, a consciência de ser um Eu. Quem quiser ser prático na resposta, afirmando que para lado nenhum, que está ali, a descansar, terá que provar que somos apenas um corpo material, e nada mais.
Se não passamos de um corpo material, e nada mais, então o nosso cérebro funciona à imagem de um computador, por assim dizer: tudo são impressões nervosas, sinapses, trocas eletroquímicas…O ponto é que a noção de Eu é particular e única, subjetiva, o que não é de esperar num processo mecânico.
Se somos análogos a máquinas, então porque é que somos todos diferentes uns dos outros? Ou não temos gostos próprios? E como é que se explica que sejamos livres? Ou não seremos livres? Dava jeito não sermos; ninguém nos poderia mandar para a cadeia. Uma coisa é certa: a dormir somos todos iguais e não somos responsáveis.
Por outro lado, se formos um Eu: único, particular, consciente, livre — como a maioria de nós está convencida que é — então há uma parte de nós que não é material e que, portanto, não precisa de descansar. Para ela há de ser uma grande seca estar oito horas à espera que o corpo acorde. É como quando falta a eletricidade e uma pessoa não sabe como se entreter. Talvez seja por isso que sonhamos: pomo-nos como que a pensar às escuras.
É conhecida a renitência que as crianças têm ao sono, rigorosamente o contrário daquilo que se assiste na maioria dos adultos do nosso tempo. Começam a ser um Eu e não lhes apetece nada desligar a ficha. Os místicos de todos os tempos também são grandes apologistas da vigília. Ao contrário, os depressivos bocejam a todo o tempo; não é possível fugir à analogia com esta moda de dormir até às tantas. Há uma relação evidente entre o sono e a morte; não há cultura que o não veja. E acordar é símbolo antigo de ressurreição, haja em vista a posição fetal em que são descobertos os esqueletos dos primitivos. Os monges levantam-se antes da aurora para ritualizarem o acordar para o dia sem ocaso.
Seja como for, tudo pode acontecer a uma pessoa enquanto dorme. Não se pode defender de nenhum ataque exterior; é literalmente um corpo abandonado à sua sorte. O melhor é deitarmo-nos num lugar seguro. O coma, que fica ao meio do sono e da morte, é ainda mais perigoso; felizmente a Bela Adormecida não viveu neste século utilitarista, não esteve ligada a máquinas caras.
Mas o que é mesmo estranho é que o corpo encontre gosto em adormecer e a mente saudável se esforce para o reabilitar. O mais comum é o corpo ser associado a este mundo e a alma ao outro: seria de esperar que ela tentasse de um tudo para fugir e ele não se deixasse ir abaixo. Seria de esperar que os místicos se suicidassem.
Mas mesmo, mesmo misterioso é apreciarmos tanto a música, o mar… os corpos!, o belo, em geral — o mundo, pura e simplesmente! Pelos vistos, não é castigo para a alma estar aqui, tal como ninguém se apaixona por um frigorífico, por melhor que ele funcione e mais curvas que tenha. Pelos vistos, corpo e alma estão feitos um para o outro, à imagem dos casais.
Por fim: uma pessoa adormece de vez ou acorda de vez? Se adormece de vez, então nunca esteve acordada, à séria. A crença cristã na ressurreição da carne – que parece louca, à partida – surge, neste contexto, como deveras verosímil.
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores, é Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu último livro de ficção (O Acidente, Porto: Campo das Letras) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.