PRECES
Mário T Cabral
Acaba de ser lançado, em Portugal, um novo livro de Flannery O’Connor: Um Diário de Preces (Relógio d’Água). Trata-se de um caderno de orações, que a escritora manteve, nos tempos da faculdade, de janeiro de 1946 a setembro de 1947. Metade do livro português é ocupado com este “Sterling Note Book” fac-similado, o que é deveras importante para os estudiosos.
O facto de um livro deste jaez ser publicado no nosso país, na atualidade, é, só por si, evento notável. Flannery O’Connor é uma autora católica explícita e Portugal tornou-se, no último século, um país praticamente anticatólico, em termos de arte e literatura. Claro que há a excelência da autora, que é, nada mais nada menos, a maior escritora americana do séc. XX. Também Graham Greene está publicado, e é católico, hão de contra-argumentar; e Evelyn Waugh; e Tolkien… pois… mas dizia uma editora, um destes dias: “Até podem ser católicos; não se pode é saber”. Este é um livro de preces! E não são preces de Santa Teresa de Ávila ou São João da Cruz ou John Donne! É um fenómeno, portanto! Portanto, parabéns a Pedro Mexia (responsável pela coleção e quem assina o prefácio) pela coragem da liberdade.
Alguns contos de Flannery O’Connor estão traduzidos – também, era só o que mais faltava não estarem! Ela é justamente conhecida pela sua mestria de contista. Morreu muito nova (39), de lúpus, deixando apenas dois romances e trinta e um contos, para além de muitas cartas e ensaios. Em meia dúzia de páginas cria personagens absolutamente reais, embora bizarras, com a excentricidade típica do sul (o chamado “grotesco sulista”… ela era georgiana). Muitas delas são perversas, más a um ponto insuportável, muito distantes da Graça. São contos difíceis de ler, nada delicodoces, nada de catequista.
Aliás, Flannery O’Connor tem ensaios inolvidáveis sobre o que é ser um autor católico. Por um lado, há a obediência ao Credo, a que nenhum batizado pode escapar – o escritor católico está sempre com medo de faltar à verdade da sua fé. Isto pode parecer uma autocensura. Por outro lado, há a recusa do público ateu, que basta saber que um autor é católico para nem o ler, com medo de ser evangelizado. Não pode ser moralista, mas também não pode comprazer-se na finitude sem esperança. O caminho dela foi muito inteligente: mostrar o resultado da Queda, o resultado da distância em relação a Deus, numa palavra, a separação da natureza e da Graça (que o autor católico tem sempre de apresentar como pecado).
Aliás, a Graça é, nestas preces, um dos temas mais fortes. Comove ver a autora, ainda tão jovem, pedir forças a Deus para fugir à vulgata freudiana do seu tempo. Escreve desabafos desta ordem: “Por favor, deixa que os princípios cristãos impregnem a minha escrita, e, por favor, faz que haja textos suficientes da minha lavra (dados à estampa) para que os princípios cristãos os possam impregnar.”(p.19). Ou, ainda mais clara: “Tenho de escrever que irei tornar-me artista. Não no sentido da fancaria estética […] A palavra engenho cobre o ângulo do trabalho e a palavra estética cobre o ângulo da verdade.” (p.41). A expressão “fancaria estética” é delirante”. É o que mais há por aí, nos génios-cogumelos dos nossos dias. Estética implica verdade; e engenho, trabalho. É uma teoria!
Entre as muitas maneiras de refrescar o Natal, uma das melhores poderá ser ler este livro. Dá para ler numa noite, na de Consoada, por exemplo, enquanto se espera pela missa do Galo.