Lugar Caído no Crepúsculo, de João de Melo,
ou o destino das almas
Isto só podem ser coisas da literatura, pensou então. Outra vez o realismo mágico ou fantástico a apartar-me da minha própria pessoa, e eu a ir e a ficar aqui, como um espantalho erguido no meio do trigo, para o guardar contra a voracidade dos pássaros. (págs. 21/22).
Neste mui penoso e perigoso ofício de criticar , conforme nos diz D. Francisco Manuel de Melo no seu incontornável Hospital das Letras persisto e insisto em escrever sobre livros de que gosto incondicionalmente. E já ando nisto vai para 40 anos…
Desta vez trago à baila uma obra a todos os níveis surpreendente: Lugar Caído no Crepúsculo (Publicações Dom Quixote, 2014), de João de Melo, que regressa ao romance oito anos depois de O Mar de Madrid (2006). Pelo meio houve Divina Miséria, uma novela publicada em 2009, e uma década intensamente vivida em Madrid como conselheiro cultural na embaixada de Portugal. No regresso a Lisboa, o escritor reformou-se do ensino, viu um país em ruínas e reatou o ofício de escrever, ele que é um ser que habita a palavra (na perspetiva de Martin Heidegger), não fazendo concessões a modas literárias, aguentando o rumo da escrita num percurso literário que consubstancia, à sua volta, a distância e a ausência, a solidão e a angústia, o amor e o ódio, o sonho e a esperança, a vida e a morte no registo mais sentido de uma escrita pessoalíssima e profundamente humana.
A leitura deste Lugar Caído no Crepúsculo, onde reencontro a voz, o registo e a linguagem de João de Melo, forneceu-me horas de apetecível convívio – porque prodigiosa é a imaginação criadora do seu autor. Percorrendo as 255 páginas da obra, vi-me a viajar pelos não-lugares do Além: o Limbo, o Purgatório, o Paraíso, o Inferno e A Luz Perpétua. Ilusoriamente fui guiado, por diversos narradores autodiegéticos (não só participantes e testemunhas na ação, mas assumindo também o papel de cronistas) para esse muro intransponível que é a morte. Vi-me a voar pelo vazio sideral, e, vivendo uma nova realidade verdadeira (pág.20), fui levado a descortinar o que está no lado de lá da vida. Nesta jornada simbólica cheia de riscos, nesta viagem fantástica do imprevisto e do imprevisível, passaram, rente a mim, milhares de almas etéreas que padeciam, sofriam e erravam… E ouvi choros e ranger de dentes, escutei acordes de harpa, e julgo ter avistado a resplandecência do Criador, divisado o bafo sulfuroso do Demo e entrevisto os voos alados de Anjos e Arcanjos. Enfim, vi-me enredado na sintaxe esplendorosa e na arte literária de João de Melo.
Lugar Caído no Crepúsculo (título retirado de uma frase de Juan Ruflo) é atravessado por um sopro onírico, havendo ainda a registar, nesta escrita alegórica, um vento profético e evangélico, não fosse João de Melo profundo conhecedor dos textos sagrados. As mitologias cristãs estão cá todas, sendo que as preocupações temáticas deste autor com as questões da Igreja Católica, da fé e dos seus contrários constituem a grande metafísica dialética da sua ficção, com o presente romance levada ao extremo mais angustiado e a uma espécie de sondagem dos limites conscientes da vida e do mundo.
Por via desse sopro onírico, há quem goste de situar este autor num pretenso realismo mágico ou realismo fantástico (rótulos que lhe ficaram desde a publicação, em 1983, de O Meu Mundo Não É Deste Reino, para mim o seu melhor livro). Mas o realismo de João de Melo é sui generis, pois que bebe de outras fontes. Por exemplo: as do universo mítico-cristão e mítico-simbólico vivido pelo autor na sua terra natal, ilha de São Miguel, onde mais de cinco séculos de contacto permanente com o mar, de isolamento físico, de horizontes finitos e de uma religiosidade gerada no terror sagrado de sismos e vulcões, levaram o açoriano a possuir uma certa visão apocalíptica do mundo, segundo tese do próprio João de Melo (1). O realismo mágico latino-americano e o Gabriel García Márquez não passam por estas coordenadas.
Para mim o realismo mágico/fantástico deste autor traduz-se numa capacidade narrativa, numa mestria descritiva e numa indiscutível qualidade literária. Impressionou-me sobremaneira nesta obra a capacidade de nomeação e a carga significativa dessa nomeação. Coisa notável, pois que não é tarefa fácil definir entidades imaginárias, narrar o indistinto, o irreal, o imponderável, o inconcreto e o imanente, e mais difícil ainda é nomear a imaterialidade, a intemporalidade, a implausibilidade, a espiritualidade e a infinitude cósmica.
Mas é óbvio que ao falar de tais misteriosas abstrações, João de Melo remete a atenção do leitor para a atualidade de um tempo lisboeta, português e ocidental. Daí que os seus narradores, perante o julgamento das almas tendo em conta os males cometidos na vida terrena, exerçam feroz crítica social, questionem Deus, denunciem várias classes socioprofissionais, diferenciem o Bem do Mal (curiosamente o economista e o corretor são símbolos do mal) e, para moralizar, castiguem usos e costumes. Ficamos a saber que o Além é também espaço de intrigas, purgas, depurações, catarses, ajustes de contas. E que, no Paraíso, triunfam as artes, pois que lá abundam pintores, músicos, escritores e artistas.E que no Inferno estão os ditadores de todos os tempos e de todos os lugares: os bárbaros, os assassinos, os prepotentes, os corruptos, os burlões, os falsários e outras hediondas criaturas (pág. 224).
Por tudo isto, Lugar caído no crepúsculo, seguindo uma teoria do homem no mundo, aproxima-se mais da moralidade da trilogia das Barcas de Gil Vicente do que da teologia filosófica da Divina Comédia, de Dante. Aliás, naquele que eu considero um dos momentos mais altos deste romance, a barca de Mestre Vicente zarpa do Cais das Colunas, Tejo acima, em direção ao Inferno.
O que nunca compreenderemos são os profundos e nunca desvendados segredos da morte (pág. 28). E deveras impressionante (às vezes arrepiante) é tudo o que gira em redor do destino das almas. Por exemplo: o actor Tomás Mascarenhas que, depois de morto, assiste, in loco, aos rituais da morte do seu próprio corpo.
No fundo, João de Melo outra coisa não faz do que escrever sobre a condição humana, isto é, sobre o destino da vida humana no teatro do mundo. E, ao fazê-lo, escreve contra o esquecimento, ele que é uma autor que engrandece e dá luzimento à literatura portuguesa.
Victor Rui Dores (*)
(1) João de Melo, Há ou não uma Literatura Açoriana?, revista Vértice, nº 448, Maio/Junho, 1982.
(*) Professor, teatrólogo, escritor e crítico Literário açoriano dos mais respeitados. Homem de Letras e das Artes. Natural da Ilha Graciosa e há muitos anos a viver na bonita Horta,Ilha do Faial.