Memória, ou a nossa diáspora a norte
Memória: An Anthology of Portuguese Canadian Writers foi organizado por Fernanda Viveiros, ela própria uma canadiana de descendência açoriana, tendo sido os 15 escritores, poetas, dramaturgos e ensaístas aqui presentes seleccionados naturalmente por ela em conjunto com uma comissão editorial. Trata-se de uma antologia bilingue, pois alguns destes textos foram originalmente escritos em português pelos autores da primeira geração de imigrantes, e outros escritos em inglês pelos que já nasceram no Canadá, a segunda e demais gerações hifenizadas. Trata-se da primeira grande obra deste género, e vem num tempo muito próprio. Como se sabe, a nossa emigração para aquele país só começa em massa a meados dos anos 50 do século passado, pelo que o registo artístico da nossa experiência de vida canadiana é muito posterior à dos Estados Unidos, onde já existe um substancial cânone literário luso-americano, com alguns dos seus escritores desfrutando de um reconhecido estatuto no sistema literário do seu país enquanto permanecem fiéis em muitas das suas obras à sua ancestralidade lusa. No Canadá, neste momento, gozam dessa projecção nacional dois nomes, estranhamente aqui ausentes, como outros recenseadores já apontaram: Erika de Vasconcelos (My Darling Dead Ones/Meus Queridos Mortos) e Anthony De Sa (Barnacle Love/Terra Nova, e mais recentemente Kicking the Sky). Também sei da problemática de nomes mais destacados em aceitar a sua presença numa primeira antologia deste género. Seja como for, comecemos pelo o que nos é aqui essencial: esta iniciativa de Fernanda Viveiros, que também detém uma nova editora, a Fidalgo Books, que agora se propõe publicar toda uma série de livros de outros autores luso-descendentes pertencentes aos dois lados da fronteira norte-americana, constitui uma magnífica e vivíssima colectânea de textos que passam doravante a fazer parte integrante dos nossos arquivos artísticos, da nossa memória colectiva, da nossa histórica vivência entre dois mundos bem diferentes, entre duas línguas e duas bem distintas tradições literárias, num vaivém sem fim entre a antiguidade do Velho e a modernidade do Novo Mundo.
Primeiro do que tudo, uma breve contextualização da obra aqui em foco na cultura literária do Canadá. Não queria apontar alguns nomes presentes nestas páginas, e deixar outros de fora. O que quero deixar bem vincado é que qualquer deles honra a nossa tradição literária diaspórica, nada menos do que os seus colegas no outro lado da fronteira – de primeiros embates com uma identidade plural à aceitação, e ascensão, sem dúvida, do seu lugar numa sociedade multicultural, cada poema, conto, ensaio ou peça de teatro transmite-nos tanto a alegria de combinar a ancestralidade açoriana e europeia com o dinamismo da vida numa sociedade como a canadiana enquanto nos fala da comédia ou tragédia humana em qualquer sociedade. A minha descoberta da literatura luso-canadiana deu-se num hotel em Toronto, há uns bons anos. Quando numa certa manhã abri o The Globe and Mail, o grande diário nacional, topei logo na primeira página um extenso artigo sobre o primeiro romance de Erika de Vasconcelos, My Darling Dead Ones, que acabava de ser publicado. Foi-me uma descoberta com vários significados. Disse para mim, isto nos Estados Unidos nunca aconteceria, muito menos com uma escritora até então desconhecida, e muito menos ainda com um romance que tinha como temática recorrente a visão de uma protagonista canadiana sobre o passado da sua família em Portugal, e depois a experiência imigrante dessa primeira geração no país de acolhimento. Não sei se este destaque pouco habitual entre nós em qualquer parte acontecia devido a um momento de busca identitária no país e cultura canadiana, ou se era a surpresa de um nome português aparecer na capa de romance publicado por uma grande editora. Eu tinha lido que até aos anos 60 falar de “literatura canadiana” era mais ou menos como nós aqui nas ilhas a falar sobre “literatura açoriana”, ambos levantando suspeitas de separatismo ou chauvinismo cultural, por assim dizer, ou então estávamos a falar de algo que “não existia”. Li, já aqui nos Açores, e para apoio teórico, o crítico Robin Mathews, no seu incontornável, quanto a estas questões, Canadian Literature: Surrender or Revolution (1978). Entretanto, eu também já tinha lido O Canada: An American’s Notes On Canadian Culture (1964), de Edmund Wilson, o primeiro grande crítico norte-americano a querer investigar e a conhecer o que se passava no país tão próximo e ainda tão “distante” do seu. O que sobressaía no livro de Wilson era de facto um rol de grandes escritores e obras, conhecidas apenas em pequenos círculos intelectuais no próprio Canadá e por uns tantos outros no estrangeiro. Hoje, Memória: An Anthology of Portuguese Canadian Writers passa a pertencer a uma tradição em construção que inclui nomes tão conhecidos no mundo como o grande teórico da literatura Northrop Frye, e os ficcionistas Robertson Davies, Margaret Atwood, e a recente vencedora do Nobel, Alice Munro.
Por certo que nenhuma literatura “nacional” é feita só de escritores famosos ou vencedores de grandes prémios. Esta antologia de escritores luso-canadianos é bem sintomática de como na escrita de qualquer língua ou país o estar nas margens em nada significa ausência de beleza e força linguística em qualquer uma das duas línguas que nestas páginas servem de signos carregados de “sentido”, “verdade”, e muito mais ainda de “estética” muito própria quando se memoriza, se retira do esquecimento, um passado vivido ou imaginado, quando se retrata uma mundividência simultaneamente no centro e, uma vez mais, nas margens da grande sociedade em que também se inserem as nossas comunidades naquele país. Na América do Norte, parece, toda a grande literatura parte de uma essencialidade identitária numa civilização continuamente a ser reinventada na diversidade humana que a compõe, o mosaico novo-mundista que junta literalmente as nações do mundo em convivência mais ou menos pacífica. São nos detalhes, já se sabe, que sobressai um vizinho ao lado em tudo igual a nós e, ao mesmo tempo, em tudo diferente de nós. Creio que a preocupação primeira de Fernanda Viveiros, que de literatura muito sabe, foi de facto dar-nos essa visão de comunidades só recentemente transfiguradas e reinventadas pelos seus artistas da palavra, e o leitor sai desta viagem com outra compreensão do percurso comunitário da nossa gente num país de calor e de gelo, em tudo radicalmente diferente do das nossas origens. Se este conjunto de escritores seleccionados é uma mostra desta outra escrita “lusa” em peregrinação só posso concluir que estamos de parabéns pela sensibilidade estética e pela agilidade linguística com eles nos brindam em cada texto.
“O meu pai – escreve Tony Correia num ensaio deliciosamente intitulado ‘One Man’s Island’, numa tradução minha, que admito retirar algum poder do inglês em que está escrito – era um homem para quem o trabalho era divertimento. O único momento em que ele se sentava era para fumar um cigarro, beber uma cerveja, ou adormecer no seu cadeirão a ver televisão. Ele governava a casa como se fosse uma fazenda, e de facto em todas as aparências era isso mesmo. O meu pai não criava porcos, mas todos os anos havia uma matança. Ele plantava a sua própria fruta e vegetais, fazia o seu vinho, enchia e defumava o chouriço. Até mesmo a meio do inverno, ele plantava flores numa estufa que tinha construído para assim antecipar a chegada da primavera”.
Eis aí a nossa ruralidade numa das cidades mais metropolitanas e modernas do mundo, a nossa capacidade de desafiar o tempo e o modo, passe aqui a alusão à famosa e defunta revista lisboeta. Nenhum destes escritores esquece nunca de onde lhe veio a sua postura no mundo – família, igreja, trabalho, história e o quotidiano, cada tema
embrulhado na vivência canadiana de todos eles com a persistente memória dos seus numa pequena ilha atlântica ou nas ruas de uma cidade ou aldeia continental. Estes não são olhares de fora para dentro, mas o contrário, são os olhares de quem já pertence inteiramente ao Novo Mundo mas não esquece, não pode esquecer, os laços que para sempre os trazem a nós aqui na outra margem atlântica. Como diz Onésimo Teotónio Almeida na sua nota introdutória a Memória: An Anthology of Portuguese Canadian Writers, em muito estes escritores se parecem com os seus pares luso-descendentes nos EUA, mas transparece sempre, mesmo assim, a originalidade da sua história própria, da sua vivência nessa outra geografia quase esquecida ou assombrada, em muitos aspectos, pelo império a sul.
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