Alexandria
Algumas das técnicas de Sebald são ancestrais, como seja a narrativa em rede: a voz (homodiegética, em Austerlitz; ou autodiegética, em Os Anéis de Saturno) interrompe a cada instante o assunto, para começar outro, que abandonará, depois de esgotado, sem fazer a ligação, a não ser no final… se o leitor tiver paciência de esperar. Grande parte do fascínio de o ler provém deste truque, amado pelos grandes contadores de histórias e pelos grandes apreciadores da literatura, como é o caso de Proust, mas também de muitos velhos das ilhas, que se sentavam durante horas a entrançar memórias desconexas que, no fim, descobríamos como verdadeiros mosaicos de alto valor.
Porque é que o ouvinte/leitor fica preso por este efeito? Porque a vida é assim: baralha vivências que parecem desconexas mas que, depois, vimos a achar mais do que coerentes, providenciais; e porque a inteligência não resiste a um labirinto de sentido. Sebald está-se nas tintas para o gosto linear do nosso tempo; poucos autores contemporâneos compreenderam, como ele, que só à literatura se permite este discurso de manta de retalhos, que acaba por ser o mais livre e, ao mesmo tempo, o mais refinado e de cume. A ciência e a filosofia parecem exames de meninos do liceu, quando comparados. Em Os Anéis de Saturno, por exemplo, mistura deambulações do crânio de Thomas Brown com a história natural do arenque, uma biografia de Conrad e outra da imperatriz Tsuxi, a história da decadência dos FitzGerald, o Musaeum Clausum de Thomas Browne…
Por conseguinte, seria de esperar que os géneros literários também ficassem caldeados: Austerlitz será um romance? Os Anéis… aproximam-se muito mais da literatura de viagens. Do Natural: um Poema Elementar será poesia? Não serão todas estas obras ensaios? Atrás de todas as páginas está um professor universitário, mais do que um erudito, um amante do conhecimento, em todas as suas variantes. As fotografias e as gravuras, os mapas e os esquissos, que semeiam muitas das suas obras, sublinham a paixão pelos livros enquanto objetos de culto, em todas as aceções do termo.
Portanto, W. S. Sebald é um escritor recomendável a muitos níveis. Mas será ele um génio? Não. De resto, é excelente para ilustrar a distinção entre talento e genialidade.
No essencial, Sebald não cria personagens inesquecíveis, não concebe histórias inolvidáveis. Os génios podem não ter o bom gosto de Sebald – e há de haver poucos génios com a delicadeza alexandrina de Sebald… os génios são ásperos, e até podem ser muito menos lidos do que Sebald: mas são pais de muitos filhos, desafiam Deus, no sentido em que só se satisfazem ao pôr mundos novos na existência. O génio trabalha com a imaginação. Inventa, ponto. Inventa.
Nas últimas décadas, o romance histórico tem sido o mais comum, o que é um sinal evidente de pobreza imaginativa. A doença também atacou violentamente a pintura, e as artes, em geral. A poesia, coitada, deixou de ter quem a soubesse ler, até à descoberta doutra pedra de Roseta. É uma época custosa para um génio singrar. Talvez este abafamento da imaginação se deva à importância excessiva dada à ciência e à técnica, bem como à desmesura do erotismo. Neste contexto, Sebald é o melhor que se pode arranjar, em tempo de crise.
Ele sabe que o seu é um tempo de crise. Poucos autores são tão melancólicos e derrotistas. Em Os Anéis…, as páginas que descrevem a decadência dos FitzsGerald são as mais sublimes, trágicas, de antologia. Ao invés, o génio, mesmo que trágico, escancara o céu.