Crônica do Natal que passou…
Lélia Pereira Nunes
Por minutos, que me pareceram uma eternidade, fiquei silenciosa segurando nas mãos uma bola de Natal, rósea, brilho esmaecido, frágil com uma singela flor branca pintada à mão. Reconheço a magnólia que ainda se destaca na velha bola. Ou, já será antiga pelo tempo de uso? Falei a viva voz: esta bola há cinquenta e sete anos enfeita o pinheiro da família. Ninguém me respondeu. Estou só no meio da sala com a missão de montar e enfeitar a nossa árvore. Na verdade, há dez dias estou neste chove e não molha. Um vazio enorme e o sentimento sufocante do ato solitário não me deixam avançar. Uma tarefa que nunca foi minha o de montar e envolver os cordões de pequeninas lâmpadas de pisca-pisca coloridas que cintilam suavemente, iluminando nossa árvore como os vagalumes em noites de verão.
Estou a ponto de desistir de tudo… Não consigo sentir o tal espírito de Natal e ele já está nas ruas, praças e lojas desde o final de Outubro esbanjando alegria e luz. Respira-se Natal em Outubro e não há quem resista ao seu apelo simbólico, bem se vê… O mesmo Outubro que deixou-nos um rasto de dor, de desamparo e uma imensa tristeza.
Mais uma vez, relanceio o olhar sobre as caixas espalhadas a minha volta com enfeites de Natal de todos os tamanhos e cores e reunidos ao longo dos anos. As lágrimas temperadas de dor e saudade teimam a lavar a cara. Como é difícil aceitar a partida da pessoa querida, que foi parte vital de sua vida! Nada será igual. Nem o meu estado civil é o mesmo.
Bem a propósito, o historiador Boris Fausto acaba de lançar seu novo livro O Brilho do Bronze (Cosac Naify, 2014) – um diário de luto onde o autor tenta aceitar a ideia do desaparecimento da pessoa que foi companheira de uma vida por 49 anos. E ainda recomeçar a vida sozinho. Não há mais Nós, apenas Eu. Como isso foi acontecer? Pergunta Boris em seu diário belo e comovente, que coincidentemente, fala da minha realidade presente. Aliás, é a mesma pergunta que me faço todos os dias, desde o anúncio cruel naquela noite de domingo do passado 26 de Outubro. Como conviver com um cotidiano que engoliu o nosso dia? Numa escrita escorreita, leve e humor inabalável, Boris Fausto vai do luto ao cotidiano concreto envolto pela marca da ausência da mulher. Também ele reconhece“como é duro aceitar que uma pessoa querida possa sumir de vez.
Pois, se é difícil aceitar a partida, infelizmente, também não é nada fácil superar a perda. Tudo isso me leva de volta a nossa sala com bolas e enfeites de Natal espalhados pelo chão, um pinheiro para montar e um velho presépio para armar à moda açoriana como a vó Sinhá fazia e minha mãe passou para os filhos e netos. Sim, como manda a tradição, sem a figura do Menino Jesus que era entronizada na Noite Santa e os Reis Magos a seis de Janeiro. Uma manifestação cultural, religiosa, cultuada no seio da família com orações e benditos em louvor ao Menino-Deus nascido, que no ventre de Maria nove meses andou escondido, consagrados pela tradição popular. A festa mesma só começava no Dia de Santos Reis, quando os Ternos de Reis ganhavam as ruas, cantando de casa em casa, a chegada do Menino Salvador do Mundo. Abro aqui um parêntese para registrar que a primeira notícia sobre a celebração do Natal e Ano Novo em Desterro foi publicada no Jornal O Mrcantil na edição de 1° de Janeiro de 1868 como uma grande novidade que chegava do Rio de Janeiro, a capital da corte brasileira.
Encho-me de coragem e parto para montar o pinheiro, aquela mesma árvore de 2m20cm de altura que comprei em 2009 na Loja do Gato Preto de Lisboa e que, carreguei, literalmente, às costas desde a loja até o ponto de taxi, situado em frente ao Armazém do Chiado. Recordei, deliciada, as peripécias que fiz para trazê-lo desde Lisboa até Florianópolis.
A seguir, comecei a enfeitá-lo. Cada bola ou enfeite pendurado lembrava uma história, momentos vividos, indeléveis. As bolas antigas, de vidro, pertenceram à minha mãe. Alguns enfeites são os mesmos do nosso primeiro Natal, em 1971. A maioria adquirimos aqui, seguindo o costume de ter um enfeite novo a cada Natal, como símbolo de renascimento. Porém, os mais bonitos por seu significado cultural e criação artística trouxemos das nossas viagens como as bolas pintadas à mão de Amsterdam e Heidelberger, a guirlanda austríaca, a pesanky de Budapeste ou a lapinha e o Menino Jesus de Ponta Delgada. Imagens que chegam à lembrança enquanto vou enfeitando a nossa árvore de Natal. Viajo… Vasculho reminiscências de outros natais. Sem me dar conta estava revisitando a nossa história de vida ao longo de quarenta e quatro anos. Uma espécie de memory revival trazendo intensas fatias da vida vivida, uma coleção de instantes, com um jeito muito terno e querido. Lembranças afáveis que a memória deixa fluir em visões do tempo. O tempo é a substância do que sou feito, ensina o poeta argentino Jorge Luís Borges.
Não é preciso acrescentar mais nada, apenas deixo seqüestrar o meu coração, mergulho no espírito da época que o tempo aproxima e trato de viver este novo tempo. Mergulhar de cabeça e acreditar que esta é uma nova fórmula de felicidade.
Devia, agora, botar um ponto final nesta crônica de Natal. Não fiz. O telefonema da amiga açoriana Maria Amélia desde Windsor, Canadá ( a jovem da historia das cartas de amor perdidas por 52 anos) desejando Boas Festas à Lélia e ao senhor Nunes mudou meu rumo. Deixei o poetinha Vinicius falar por mim da morte, apenas Nascemos, imensamente.
Encerro, citando um email que enviei hoje, 25 de Dezembro, a um querido amigo que mesmo sendo imparável é um ser humano admirável.
Oi…
Queria te contar que tivemos uma linda noite de Natal sem discursos de saudade do ausente. Nem choros nem velas.
O dia começou amarrado. O telefone não parou de tocar, amigos e parentes, lembrando o aniversário do Sebastião, 24 de Dezembro. Chorei um monte desde o café da manhã tomado sozinha no varandão enquanto lia o Jornal. O tempo enxovalhado não desanuviava o meu coração. Os filhos iam chegando com cara de choro, olhos inchados, tristes. Enfim, o dia prometia ser difícil…
Comecei a preparação da ceia sozinha. Mas, para surpresa minha, as filhas foram se apresentando para auxiliar naquilo que sempre foi tarefa do Sebastião e também suavizando os meus afazeres. A Clarisse cuidou das saladas e sobremesas ( sorvetes e mousse de Maracujá ), a Carol se encarregou do almoço ( uma macarronada com diferentes molhos para os diferentes gostos. O de camarão estava dos deuses!! ). Depois, ela ficou ao meu lado para aprender o recheio do peru que é receita da Vó Zuzu. Tarefas cumpridas, casa arrumada, mesa posta (por mim, a detalhista) fomos ao cemitério (com exceção da Carol que se nega a ir. Respeito.).
A ceia foi servida perto das 22 horas. Um silêncio pesado, os filhos e a neta Larissa (e respectivos) ficaram em pé e nada de sentarem. Acostumados ao pai a tomar a iniciativa e, ainda, ser o aniversariante do dia. Aquele lugar vazio chumbou-os. (lembrei-me do samba de Sérgio Bittencourt em homenagem ao Jacó do Bandolim, seu pai. Naquela mesa tá faltando ele, e a saudade dele tá doendo em mim.
Olhei para todos e falei: A noite de Natal é sempre a mesma. A nossa nunca mais será. Hoje, começamos um novo ciclo da nossa família. Notaram que no lugar do pai está um arranjo de flores? É uma forma simbólica de reverenciá-lo. Pois, é assim que ele se faz presente nesta noite. Sentaram. Ninguém sentou na cabeceira.
Brindamos ao pai e à vida.
O ambiente ficou leve. Alegre. Trocamos presentes, brincamos, fotografamos. Rimos muito lembrando outros natais. A noite terminou em harmonia e paz. Verdadeira confraternização familiar.
Com certeza, o Sebastião deve ter dado uma mãozinha.
Um abraço,
Lélia
Florianópolis,Janeiro de 2015