[suportei o inverno]
suportei o inverno mais longo de sempre lendo as
entrelinhas do teu vestido. acertei as horas às estrelas e nas
estrelas deixei os sonhos dos embondeiros. quando dei a
volta ao universo regressei ao princípio da palavra e voltei a
cantar tudo de novo. porque era finalmente uma criação
bela, estava transparente como uma pérola por recolher.
parei. deixei-me deserguer numa colina primordial e
inventei uma casa. usei o teu vestido para fecundar o jardim
e sempre que o sol caía nas hortênsias o amor me
encontrava. escrevi os primeiros poemas. iluminaram-se-
me as sombras, mas não tinha sombras, penas perfumadas
somente. como um anjo que guarda a eternidade, voltei a
adormecer despido. sonhei, estou certo disso, de boca
aberta, por onde se esgotou a tristeza e o pórtico naufragado
do esquecimento.
Daniel Gonçalves,
A tua luz costurou-me uma bainha no coração,
Editora Labirinto, Fafe, 2007.