Gente Feliz com Lágrimas – 25 anos depois
(um testemunho de leitor)
Urbano Bettencourt
Celebramos o quê, quando comemoramos os vinte e cinco anos de um livro?
Sejam quais forem as respostas, e elas serão muitas, de certeza, cada leitor terá a sua razão particular e uma diferente matéria de celebração, muito para lá dos motivos institucionais e públicos. A relação do leitor com um livro é sempre algo de muito pessoal e íntimo, que resulta tanto da capacidade de um para cativar como do outro para deixar-se cativar e sucessivamente interrogar o indizível de cada texto.
Aquilo que eu celebro em Gente Feliz com Lágrimas, hoje e de cada vez que o abro, é o facto de continuar a comover-me com um romance que refigura os nossos fantasmas mais secretos e também os outros, os públicos e históricos, e com esses fios singulares e múltiplos tece a malha de um tempo insular em desagregação, ainda que, sob outra perspectiva, cercado e circunscrito ao território da ilha; porque este é, no mínimo, o tempo de duas gerações, a de Emanoel Botelho e a dos filhos, cuja vertigem centrífuga acaba por arrastar também com eles o próprio pai.
Um grande romance deve ser aquele que cresce com o tempo e nos faz crescer com ele, dando-nos em simultâneo a consciência desse mesmo crescimento, que é uma outra forma de dizer amadurecimento enquanto leitor. Dezassete anos consecutivos de estudo e leccionação de Gente Feliz com Lágrimas, na cadeira de Literatura Açoriana, da Universidade dos Açores, proporcionaram-me o aprofundamento progressivo de uma obra atravessada por múltiplos veios temáticos e pulsões individuais e colectivas, por modulações discursivas diversas em que cada personagem traz ao conhecimento de um outro a sua experiência de dor, mas também (talvez sobretudo) o triunfo sobre as lágrimas e a humilhação do passado. Esses anos permitiram ainda, sob outro ângulo, a revelação gradual de um romance espesso na sua construção e nas diversas camadas de significação que o enformam, entre o realismo e o simbólico, a dimensão espacial e a representação social, a referencialidade externa e a pura efusão lírica.
Num universo assim vasto e complexo, as figurações do pai e, sobretudo, a da casa sempre me suscitaram uma particular atenção, pelos valores de que são investidas no interior da ficção. Se o «pai» pode congregar sentidos que ultrapassam o da simples entidade biológica (como o pai religioso, político, encarnações do poder em geral), a «casa» é o microcosmo ambivalente, refúgio e protecção, mas também gaiola e lugar de confrontos, reserva de afectos e de experiências, de sonhos e desesperos.
A «casa» para mim sempre foi esta, cheia de gente e de ruídos (ou foi mais esta, de preferência àquela que Nuno/Rui Zinho encontra e descreve no seu «regresso invisível»). Daí, a grande sensação de desconforto que experimentei numa das ocasiões em que pude confrontá la com a outra, concreta, de pedra e cal, numa tarde da Primavera de 1992 em que passei pela Achadinha com o Robert Looije; ele tinha vindo da Universidade de Utrecht para a dos Açores à conta de um trabalho sobre emigração e a sua imagem na literatura e eu combinara uma «visita à casa» depois de acabado o estudo de Gente Feliz com Lágrimas.
Havia um silêncio imenso ao longo da rua, e talvez mesmo alguma das velhas que nos olhavam de dentro do xaile estivesse ali à nossa espera desde os anos cinquenta. E a casa lá estava, fechada sobre o seu mistério, igual a outras no silêncio e na quietação, e era isso que nos incomodava. Porque nós sabíamos que havia ali uma infância multiplicada por muitas e todas elas reféns daquelas paredes e de um tempo dorido. Mas tudo isso ficara resguardado num outro lado, num livro que redimia esse tempo e essas vidas por inteiro e dava sentido ao desamparo da casa naquele momento: só esse livro, poético e amargo, enchia de vida o que ali era ausência e congregava o que a vida dispersara pelo mundo. Eis, afinal, o poder da Literatura, o poder de Gente Feliz com Lágrimas.
Livraria SolMar
Ponta Delgada, 25 de janeiro de 2014