Mário T Cabral, 05 de Abril AD 2015
A ciência desatualiza-se a alta velocidade. Ninguém lê hoje a física de Aristóteles, em-bora a sua metafísica continue a desafiar os melhores filósofos da atualidade. Também é mais difícil ler um romance antigo do que poesia da mesma altura. Isto interessa na medida em que o nosso tempo considera como verdadeiro o discurso científico e não o poético ou metafí-sico.
De certo modo, não há nada de extraordinário neste facto. Metafísica e poesia apostam naquilo que permanece, enquanto que a ciência e o romance centram-se no tempo e no espa-ço. Não admira, pois, que os últimos percam a validade, enquanto as primeiras continuem próprias para consumo.
Pode concluir-se que a verdade depende do tempo, o que não faz sentido: se é verda-deiro, tem de ser SEMPRE verdadeiro; nem sequer os físicos dão valor à física de Aristóte-les, que estava enganado, já na altura, sem o saber. Uma coisa é precisarmos de tempo para atingir a verdade, outra é a verdade depender do tempo. Preferimos materiais que durem, relações que durem, etc.
A coisa complica-se se pensarmos em termos de discursos: a ciência usa conceitos e, desde a revolução moderna, prefere a matemática à lógica, ao contrário do que fora prática até à Idade Média; e a poesia usa a metáfora, e não o conceito. O romance aproxima-se mais do conceito do que da metáfora.
Qual dos discursos é o verdadeiro? Assim, de repente, tendemos a responder que a po-esia é um fingimento, coisa de não levar a sério. Mas na nossa vida diária, comum, íntima, sentimental… verdadeira, passe o termo, não somos tão científicos quanto isto. Uma pessoa normal tem consciência que muito na vida não é «Pão, Pão, queijo, queijo». Bem feitas as contas, somos poéticos e desejamos sê-lo durante mais horas do que se imagina.
O que é que isto interessa? Isto interessa porque o discurso que é considerado verda-deiro determina as nossas vidas e pode, por tabela, matar os que lhe são contrários. Veja-se a seguinte pergunta: quem é que tem razão: a ciência ou a religião?
Não pode haver várias verdades? É contraditório dizer que pode haver várias verda-des. 4 + 4 pode dar soma 10 na China? E no século XXX? A verdade é exclusiva. O que tem de haver é uma hierarquização dos conhecimentos, colocando cada qual no seu lugar, à ima-gem duma árvore (prática antiga).
O oitavo mandamento adensa este problema, na medida em que contrasta a verdade com a mentira, e já não com o erro. Introduz o livre arbítrio, a vontade humana. O aluno que recebeu uma negativa no teste de Matemática não é mentiroso e um génio da Física pode ser
um grandessíssimo aldrabão. Contudo, não faz sentido que a verdade moral (emunah) e a ver-dade científica (veritas) se oponham, se desconheçam.
Emunah traduz-se muitas vezes por “fé”. A fé é uma convicção inata, uma perceção da verdade que transcende a razão, sem a ela se opor. A razão nunca consegue a certeza absolu-ta da fé, como se pode provar com a história da ciência e da filosofia. Por isso, do ponto de vista puramente racional, a fé dá mais garantias de conhecimento. Não pode ser uma fé qual-quer, sendo que a razão ajuda a discernir a mais coerente. Ou seja, fé e razão foram feitas uma para a outra.
Diz Salomão que «o tolo acredita em tudo, enquanto que o sábio compreende». Ou se-ja: analisa. Nosso Senhor Jesus Cristo é muito mais perentório: «Eu sou o caminho, a verda-de e a vida; ninguém vai ao Pai senão por mim.»
Mário T. Cabral. Natural da Terceira, Açores, é Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporâ-nea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu livro de ficção (O Acidente, Porto: Campo das Letras) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.