Que segredos se segredos têm
as portas de ponta delgada?
Que rumor de silêncio?
Que vertigem de horizonte
pelas portas se vislumbram?
Pela tarde quase finda
vagueia-se desocupado
ao longo do cais pela avenida
que já foi mar
E todo o mar que o olhar alcança
é vertigem sem fim
Desatraca um barco rumo a qualquer lado
E todos os barcos são almas peregrinas
Passa ao largo a silhueta serena
de um cargueiro de rota certa
E todas as almas são cargueiros
de rota incerta
Um veleiro de privilégio aventureiro
faz-se à marina de todos os repousos
E todas as almas são desassossegos marítimos
Os últimos raios de sol do dia
recortam no mar uma suave ondulação
E todas as almas são recortes da vida
Cai a noite e indistingue-se a cidade
como sonho esbatido na memória
As portas de ponta delgada perdem nitidez
E todas as almas são segredos recolhidos
Se segredos têm que segredos
guardam as portas de ponta delgada?
Fernando Martinho,
Apenas um tédio que a doer não chega,
Edições Fluviais, Lisboa, 2005.
Guimarães, Fernando Martinho (1960) ensaísta e poeta, natural da vila de Alijó, Trás-os-Montes, açoriano de afeição, trabalhou na cidade do Porto, tendo-se vindo a radicar na de Ponta Delgada, ilha de São Miguel.