Cantata à etnodiceia açoriana
1 – que é feito do sal da palavra para todos os (des)gostos?
Se ainda cremos num passado que mereça ser revisitado, seria aconselhável manter a sua estimada imutabilidade. Às vezes penso não ser leviandade cultivar a arte de escapar ao tempo, para melhor navegar na suave ‘boleia’ da eternidade… Mas cuidado: afinal, existe ou não o misterioso ‘agora’ universal? Haja calma: já nos basta acariciar a graciosa invenção do ‘prémio eterno’ – herança conferida a quem pratica o bem, amedrontado pela punição bíblica prometida à transmigrante condição humana…
Estou a ser complicado? Peço desculpa. Está calor. Vamos refrescar a aragem desta nossa conversa. Estive há pouco a escutar o eco metafórico da versão grega do hino da liberdade: povo punido nunca mais será unido!…
E pronto: – aqui estou! O meu confessionário é a comunidade onde estou inserido; a minha religião é a ferramenta simples que me ajuda a harmonizar as legítimas prioridades individuais com as expectativas que a comunidade reserva aos que lhe merecem confiança. Adianto uma breve ressalva para lembrar que na terrícola convivência democrática, o indivíduo não deve permanecer assoberbado no seu egotismo triunfante (o egoísmo é outra loiça); o ideal seria aceitar (voluntáriamente) o credo da humildade para arregaçar as mangas às ideias que outros já pensaram…
Em questões relacionadas com a fé religiosa, as opiniões devem ficar em casa a descansar. Não cuidaria hoje de revisitar o remoçado lamento do catolicismo esvaziado da sua original componente cristã. Prefiro a alegria da fraternidade cristã inspirada no Concílio Vaticano II, sem desprimor para a valentia espiritual praticada pelo apreciado papa Francisco.
Há preceitos que não podem ser desmentidos, mesmo quando distantes da sua pragmática incontestabildade. Talvez por isso não haja o direito de menosprezar, por exemplo, a convicção dos que rezam para que ‘aconteça’ chuva abundante nas ilhas caboverdianas, ou façam petições aos ‘anjos-da-guarda’ para que o guarda-redes da equipa adversária tenha uma crise de ‘cegueira’ temporária; ou ainda os que apostam no poder duma ‘avé-maria’ para dominar o ‘puxão’ das máquinas-da-fortuna instaladas nos casinos onde os vícios são legais.
Pois é. Nem sempre conseguimos ser gestor pragmático inserido na dobadoura acicatada pela moderna ditadura da necessidade. Ora aí está o dilema clássico que nem sempre é fácil de optar: “primeiro os deveres, depois as devoções”…
2 – …é pecado pedir esmola à saudade?
Quem anda aí lembrado do maravilhoso poema Sermão da Montanha? Ainda se lembram do Evangelho que diz ‘veritas liberabit vos’ (sereis libertos pela verdade).Gosto da frase, mas depressa sinto-me desafiado pela pergunta: – Quid est veritas? (o que é a verdade?)
Continuamos a observar as enfadonha (e persistente) confusão entre religiosidade institucionalizada e espiritualidade libertadora. Não busco a certeza de saber se a libertação fantástica de que a humanidade espreita há milhares de anos possa vir a ser vislumbrada através do hinduísmo, que aceita o universo como uma ilusão; ou então seja almejada nos sinuosos atalhos do pessimismo schopenhaueriano, que imagina a terra como degredo… Pois seja!
Na minha modesta qualidade de‘emigrante-navegante’, continuo na rota do Cabo da Boa Esperança dum mundo melhor, como militante voluntário da crença anteriana de que a prática do ‘bem-comum’não funciona como cartão-de-crédito para garantir a reciprocidade individual. Aliás, as ilusões voluntariamente consentidas são ferramentas necessárias para resistir à ditadura da realidade. Sabemos que o Cristianismo foi acontecendo à maneira que o Judaísmo ia fenecendo, porventura afogado no seu etnocentrismo multissecular. Entretanto, a globalização religiosa veio acentuar novas premências: a libertação das mentalidades; a democratização do acesso aos caminhos da salvação; sobretudo, o valor universal do direito à Paz!
…/… Para encurtar esta (porventura) demorada homilia improvisada, diria que a humanidade continua intrigada com o divórcio entre governantes e governados. Não convém esquecer que somos herdeiros do barbarismo inerente à ancestralidade humana: “transformar a força em razão e a obediência em dever”… Mas há expectativas pertinentes: quem possuir a humildade fraternal (e a coragem cívica) para apreciar o património humanista dos peregrinos da etnodiceia açoriana, está preparado para acreditar na mais-valia democrática da ecumenicidade político-partidária?…
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Rancho Mirage, California
Julho, 2015
(*) o autor não aderiu ao recente “acordo ortográfico”
Nota: O artigo acima,integra a série "Memorandum" de autoria do escritor açoriano,nascido na Ilha de São Miguel e residente na América – João-Luis de Medeiros.