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Este conteúdo fez parte do "Blogue Comunidades", que se encontra descontinuado. A publicação é da responsabilidade dos seus autores.
Imagem de Otília Frayão: A Pertinência do Nome – Irene De Amaral
Comunidades 27 ago, 2015, 10:27

Otília Frayão: A Pertinência do Nome – Irene De Amaral

Resumo:  A poetisa faialense Otília Frayão permanece um nome sem corpo na imaginação afetiva e cultural dos Açores a partir da segunda metade do século XX. Por vontade própria e familiar não lhe é conhecido esforço de divulgação da obra escrita antes ou depois de ter decidido partir da sua ilha natal no início de 1951. Assim sendo, para além de umas poucas ameaças de estudo futuro sobre a poetisa, apenas foram tornadas públicas até ao presente as vozes de Ruy Galvão de Carvalho, que a inclui na sua antologia de 1988, e de Pedro da Silveira, que, antes de falecer, fez questão de deixar algumas coordenadas para que a obra e a mulher não sejam esquecidas. Dona de uma forte ambição de crescimento intelectual, no dizer do testemunho escrito deixado pelo navegador solitário, Edward Allcard, Otília Frayão merece ser estudada para além da narrativa anedótica da sua partida que se ficou muito pela história da jovem aventureira à procura de marido. Este é, pois, um breve estudo exploratório que pretende indagar acerca da ambição e da necessidade de realização intelectual da jovem poetisa quando deixa o Faial.Palavras-chave: Otília Frayão, Faial, Açores, poetisa, passageira clandestina

Os recursos bibliográficos e o conhecimento da biografia de Otília Frayão são na realidade parcos, pela falta de referências publicadas acerca da autora, mas também porque os testemunhos orais da vida de Otília Frayão são unicamente do domínio pessoal da própria e dos que com ela conviveram ou que dela ouviram falar através das redes de amizade que naturalmente se formam entre ilhéus. A autora do presente estudo posiciona-se num lugar de descoberta a partir do exterior das ligações afetivas que circundam a ilha; com a curiosidade de um dia ter ouvido em primeira mão Pedro da Silveira pronunciar o nome de Otília Frayão, aquando da última deslocação do autor e pesquisador açoriano aos Estados Unidos, em sessão pública na biblioteca Casa da Saudade em New Bedford.
     A presente abordagem pretende dignificar a vontade da jovem poetisa Otília Frayão em detrimento das visões fantasiosas que a imprensa e algumas opiniões da época popularizaram acerca da bela portuguesa de cabelos negros muito aquém do direito ao nome próprio “Otília Frayão.” Para o tratamento das circunstâncias foram fundamentais os testemunhos de dois autores que em comum têm o facto de terem conhecido e privado com Otília Frayão. O escritor cabo-verdiano Manuel Lopes que viveu no Faial entre 1944 e 1955, e que refletiu sobre as condições do exercício da função cultural nos meios pequenos; e Edward Allcard, o navegador solitário, em cujo barco Otília partiu em janeiro de 1951. O testemunho escrito publicado e as suas respetivas fontes que estarão ainda na posse da família de Allcard adivinham-se elementos pertinentes para se poder escrever sobre o caso de Otília Frayão como um marco importante na busca da voz da mulher açoriana.
A proposta que agora se apresenta pretende num primeiro momento revisitar o acontecimento que foi o embarque em jeito de fuga da jovem mulher faialense por esse Atlântico abaixo na década de 50 do século passado. Ter-se-ão em conta o olhar da própria passado pelas citações do seu diário de viagem no Temptress bem como o relato na primeira pessoa dessa viagem proibida, o do próprio Edward Allcard em cujo barco a poetisa faialense decidiu partir em 1951.
     Num segundo momento far-se-á uma introdução ao estudo exploratório da escrita da autora. Na verdade, a possibilidade de se levar a cabo este projeto de investigação servirá o propósito da emergência na divulgação do trabalho desta açoriana nascida em 1927 e a residir atualmente em Espanha. E ao mesmo tempo será esta uma oportunidade de se contribuir para o preenchimento da rasura já demasiadamente longa sobre Otília Frayão, nome feminino das letras e da diáspora açorianas.
     Num certo dia e a uma certa hora, o navegador solitário inglês Edward Allcard não pôde deixar de exprimir o vazio que lhe ia então na alma no momento da partida da jovem poetisa Otília Frayão desde Casablanca, em direção a Inglaterra. No tempo em que ocorrem estes factos referentes a uma despedida de dois companheiros de viagem marítima, da Ilha do Faial nos Açores até à costa africana, é inevitável a associação deste momento vivido entre Allcard e Otília Frayão a um outro tão célebre adeus do écran de cinema, “Casablanca” (1942), em que Ilsa (Ingrid Bergman) não pode ser parte do que Rick (Humphrey Bogart) tem pela frente. Se bem que, apenas nove anos depois do aclamado filme, a partida da poetisa faialense mereceu antes o tom condenatório ou irónico de vários jornais por esse mundo fora. Que importam esses testemunhos, se sobre esse dia Edward Allcard registará: 


Two hours later I stood in my hatch and gazed towards the east; roaring through the dawn mists was a big four-engined airliner taking my Otilia away to new adventures. I prayed that the new world to which she was flying would not prove a disappointment to her island dreams. [Duas horas mais tarde, apoiado no postigo, eu olhava para Este; ouvia-se o som do enorme quadrimotor, perdendo-se nas brumas da madrugada, levando a minha Otília para novas aventuras. Nessa altura rezei para que o seu novo mundo não a desiludisse em relação aos seus sonhos da ilha] (Temptress Returns 225)

     Estamos em 1951, sendo que há alguns meses atrás o escritor cabo-verdiano a viver no Faial, Manuel Lopes, definiu com exatidão essa importante aposta na criatividade dos jovens oriundos de meios pequenos, ou como ele os designa, meios acanhados. Na conferência “Os Meios Pequenos e a Cultura” proferida em 28 de março de 1950 no Salão do Sporting Club da Horta e publicada na mesma cidade em 1951, o autor insiste na atenção ao lado espiritual (sic) da vida. Considera preocupante a manutenção do marasmo em desfavor do espírito criativo que é apresentado em confronto com a dominadora visão pragmática e estandardizada, forte obstáculo à integração da inovação e do discurso disruptor da tradição para se crescer humanamente: 

Nos meios pequenos os espíritos habituaram-se a se alimentar das exiguidades circunjacentes, — e caso uma ou outra ovelha insubmissa se não conforme e tente forçar os limites de conduta impostos por hábitos rígidos, elementos conservadores, género carneiro teimoso, típicos desses meios, entram em acção na suposta defesa da sua estabilidade ou integridade espiritual e sobretudo moral — porque todo o acto do espírito está ali severa e solidamente ligado a conceitos morais e policiados por eles. (Os Meios Pequenos e a Cultura 10)

     É através da exímia imagem do confronto desigual entre a “ovelha insubmissa” e o “carneiro teimoso” que Manuel Lopes descreve o elemento constrangedor de um meio social castrador da individualidade e da reflexão cultural. Expectavelmente, é nos jovens que Manuel Lopes concentra o esforço de aconselhamento, pois é essa mocidade que corre o risco de continuar a desistir da sua realização plena (sic), “porque abandonada a si própria ou aos recursos mais elementares tarde ou cedo é forçada a render-se à evidência e a desistir…” (21). Na verdade, apesar de ter ficado apenas alguns meses no Faial, Edward Allcard em Temptress Returns realçará de uma forma sensível e até bem humorada os constrangimentos inerentes à condição ilhoa, resumindo-o tão bem na hora em que olha o avião em que parte Otília Frayão. Ele permanece o amigo a não querer que o futuro desaponte os sonhos da jovem mulher que até então vivera a partir da ilha.
     Otília Frayão é nome de mulher e de açoriana do Ocidente. O traço fonológico da abertura desse O − apetece dizer − carrega a força de quem quer ser mais do que lhe permitem as circunstâncias de ser mulher do século XX, amarrada aos preceitos tradicionalistas e falocráticos de uma certa ideia de ilhas suspensas no tempo e no espaço. Otília é, pois, o mistério de uma escrita que, se prosseguiu, ter-se-á realizado em contextos outros, multilingues e dispersos; uma escrita que tarda em se fazer conhecida por via não só da des-vontade da sua autora como também da inércia de certos meios de divulgação da cultura açoriana que têm receado a atribuição de cidadania autoral a vozes que puseram à margem do tal enquadramento de bom senso e respeitabilidade, de discrição e direito a homenagens autorizadas.
     Otília Frayão fixa-se como nome que desafia o silêncio, silenciando-se também o nome em si mesmo, como O redondo, autónomo. Em 1951 aconteceu esse facto que, por si só, não mereceria destaque especial. Uma jovem faialense de maior idade resolve partir num barco de passagem pela ilha. Quantas outras jovens não o terão feito, sendo comentadas à boca pequena para logo depois cairem no anonimato que os anos criam? Não fora o talento poético já descoberto, talvez essa partida abrupta não tivesse deixado suspensa a curiosidade para se conhecer a voz e se ficar à espera de mais obra da autora. Pedro da Silveira, na recensão que faz dos autores açorianos a merecerem divulgação, é bem assertivo em relação à obra de Otília Frayão. Afirma que “São já da minha geração Armando Rocha (n. 1918), Carlos Wallenstein (1925-1990) e Otília Frayão (n. 1927). O primeiro e a última são vivos, mas não é provável que procurem publicar-se, como se impõe. Ambos terão pouca obra, mas em ambos os casos significante” (Boletim do NCH, 2006).
     O escritor galego Camilo José Cela também terá empeçado na história de Otília Frayão, pelo que a conta numa sua crónica reunida em Garito de Hospicianos (1963); a romanesca história de amor entre “El Robinsón y su Beatrice.” Eduardo Allcart e a señorita Otília são ironicamente apresentados como dois seres suspensos do sentimento, a par da expressa vontade de Otília em querer viver a sua vida a seu modo:

Eduardo Allcart, el hombre que, a pesar de su fiero aire de corsario, debe de ser un sujeto más infeliz que un cubo y un sentimental con un corazón de poeta de juegos florales, le dijo eso que se dice siempre de que los víveres habrá que repartilos, etc., y a continuación la besó con ternura. [Edward Allcard, o homem que, apesar do seu feroz ar de corsário, deve ser um sujeito com um coração carente de poeta de jogos florais, ter-lhe-á dito que seria necessário dividirem os mantimentos, etc., e depois beijou-a com ternura]. (187)
 
     E o tom irónico continua, limitador das expetativas que uma poetisa como Otília Frayão afinal já revelara possuir. Isto é, Cela, à distância, desenha o perfil de uma moça superficial, que apenas estaria interessada em arranjar marido: “El procedimiento empleado por la señorita Otilia para cazar – o pescar, mejor – novio, es arriesgado, sin duda, pero, por lo que se ve, bastante eficaz. Quizá los solterones más conspicuos sean los navegantes solitarios, pero a este navegante solitario nuevo ya ven ustedes lo que le ha pasado.”[O procedimento seguido pela menina Otília para casar – ou melhor, pescar um noivo – é arriscado, sem dúvida −, mas pelo que se vê, bastante eficaz. Talvez os solteirões que mais chamem a atenção sejam os navegadores solitários, mas a este navegador solitário já veem vocês o que lhe aconteceu]. (188)
     Para já, o testemunho mais fidedigno parece ser o de quem viveu a viagem na companhia de Otília Frayão. O próprio navegador solitário, Edward Allcard, fá-lo em discurso direto. No seu livro Temptress Returns (1953), o inglês relata o percurso desde o encontro casual até ao fim do convívio entre ambos em Casablanca. E para além da narrativa, as fotografias de Otília sob o foco atento da sua máquina fotográfica funcionam como um significativo contributo para se perceber o nível de liberdade de movimentos que a jovem parece ter apreciado no decurso da viagem, quer no desempenho das tarefas diárias quer nos momentos de descanso a bordo.
     No capítulo 45 de Camera Lucida, Roland Barthes, ao diferenciar a representação fotográfica dos objetos e das pessoas, refere-se à capacidade da fotografia autentificar a existência de um ser, pelo que a ambição de quem olha a fotografia de uma pessoa realiza-se na satisfação do desejo de se perceber o que está para além da imagem técnica, “evident (this is the law of the Photograph) yet improbable (I cannot prove it). This something is what I call the air (the expression, the look)” (107). E logo depois, Barthes define o que é o ar de uma pessoa, um conceito afinal bem vulgar na apreciação popular que habitualmente as pessoas fazem entre si, mas que o teórico francês explana até à componente espiritual, “the air a simple analogy—however extended— as in ‘likeness’. No, the air is that exorbitant thing which induces from body to soul—animula, little individual soul, good in one person, bad in another” (109).
     É essa positividade que transparece nas fotografias de Otília tiradas no Temptress e que permitem inferir o bom relacionamento entre o navegador e a passageira clandestina. Há duas imagens que o testemunham, na medida em que são fotografias individuais de momentos captados pela câmara do homem em apreciação da presença da jovem portuguesa, ainda que não deixe de assumir o tique classificativo, “The stowaway, Otília Frayão;” e uma outra conseguida em Casablanca, em que o tom afetivo inferido da ausência do nome de família “Frayão”parece ser indicativo do companheirismo entre ambos, “Otília in hatchway at Casablanca.” Na primeira imagem, a moça está de pé a equilibrar-se no minúsculo convés de madeira, enquanto procede à limpeza do mesmo. É uma jovem cosmopolita dos anos 50, que veste calções e uma blusa de abraço que mostra os braços e deixa adivinhar as costas desnudas. O corte de cabelo está de acordo com os padrões da moda. A imagem feminina mostra uns delicados pés descalços, objeto de um dos elogios de Allcard a Otília. Esses pés descalços, sem estarem deslocados, contrastam com o convés em tom escuro a abarrotar de apetrechos de navegação. O navegador fará um elogio à resiliência e pragmatismo da ilhoa portuguesa que lhe caiu no barco e que acabou por lhe mostrar que a rotina da navegação, dividida é mais agradável .
     Na segunda foto, o nome Otília é suficiente para revelar a jovem de olhos fechados, a apreciar o calor de um dia de sol. O barco está ancorado em Casablanca. Na narrativa é revelada a excitação dela por poder visitar Casablanca, por ter já conseguido chegar à costa africana. O meio sorriso nos lábios faz crer na consciência de que se está a captar o olhar masculino por detrás da câmara. Otília veste uma camisola de algodão de tons claros em contraste com o cabelo negro impecável tal como as sobrancelhas arqueadas. O sorriso dá destaque aos lábios cheios da portuguesa do Faial. Esta não é a imagem de uma adolescente, mas sim a da jovem mulher que sabe o que quer para si. E já nem está em sintonia com a frustração de quem espera por quem partiu, como um dia escreveu:

Sentar-me perto do lume
Sentir no rosto um calor ardente
E esquecer que tenho o coração frio
Olhar para as chamas, vibráteis até o inexorável
E sentir no espírito uma ausência dolorosa de reflexos
Interrogar até à última esperança
Com certeza que de mim mesma não terei resposta
Para sentir que não sou
E que aquilo que fui
Extrema evocação — se foi para sempre. (Poetas dos Açores 387)

     O poema reunido por Ruy Galvão de Carvalho na antologia Poetas dos Açores (1988) tem a data de 25 de novembro de 1950. O que é extremamente significativa é a vitória pessoal dessa fotografia sobre a insatisfação e o interior e frio vazio acompanhando a falta de horizonte desse “Interrogar até à última esperança/Com a certeza que de mim mesma não terei resposta.” De facto, alguns meses depois a geografia será totalmente outra e o leque de opções já consegue ser uma escolha pessoal. É também pela sua decisão de partida que Otília regista a afirmação autónoma de uma vontade própria que não se perderá nas brumas da ilha.
     Na resenha pessoal e única da sua biografia teórica intitulada “Un effet d’épine rose,” Hélène Cixous descreve o riso da Medusa eternamente jovem que ela ressuscitou nesse outro seu ensaio, “Le rire de la Méduse,” de 1975 (Le rire de la Méduse et autres histoires) precisamente para incentivar a auto-afirmação das mulheres, para chamar a atenção para a importância das mulheres prosseguirem uma escrita sua. Num percurso profundamente marcado pelas emoções, o riso jovem que emerge neste modo de afirmação é um misto de agressividade e de angústia sentidas pela figura feminina, “de même ce rire ancien et toujours jeune qui naissant de la colère et de l’impatience mêlées à une angoisse à jamais inséparable de moi, je ne peux pas ne pas le reconnaître” (31). Um exercício de leitura consequente entre a escrita das frustrações da jovem poetisa e o meio sorriso captado pela câmara de Allcard permite essa perceção de não se poder deixar de reconhecer a coragem da jovem Otília nos anos 50, a partir do Faial, partindo dos Açores.
     Muitos anos mais tarde, a sobrinha neta Lia Goulart, dá testemunho da mulher de personalidade forte num blogue. Em “Comissão de Gaijas” é postada uma entrada em 26 de junho de 2007, intitulada “Otília,” em que Lia Goulart dá conta de uma romaria a Berdun em Espanha ao encontro dessa tia-avó inspiradora de um grupo auto-intitulado “Comissão de Gaijas”:

Ancorei numa "ilha" no meio das montanhas. Uma aldeia chamada "Berdun", aonde esperavam a minha tia-avó, filha, netos e amigos. Era o seu aniversário de casamento: 50 anos!
     Os festejos tornaram complicada a minha aproximação. Otília era o centro das atenções. Apesar dos seus 79 anos, o tempo não conseguiu quebrar o caracter forte e único desta senhora. Pelo contrário, só o fortaleceu.
     Mas este facto não se tornou numa surpresa. O que me surpreendeu na viagem, foi encontrar o reflexo desta mulher nas pessoas à sua volta: nas longas conversas com o meu avô (seu irmão) que me deu a conhecer outras perspectivas da história, e principalmente na filha Melanie. Esta mulher, que também ama o teatro, partiu em busca dos mares verdejantes do Peru, da Turquia, fez do risco a sua bandeira, renegou as convenções familiares e sociais e assumiu um estilo de vida longe das grandes cidades. "Encontrei a felicidade" — disse ela, ao olhar as montanhas. Reconheci a mesma força e determinação da Otília Fraião das histórias que me contaram. E senti-me tão feliz por fazer parte desta família de aventureiros!

     Antes de partir em viagem, em discurso poético, Otília já estabelecera a incompatibilidade circunstancial da ilha e da urgente, imensa e autónoma necessidade de realização pessoal. Daí que afirme:


Feliz ou infeliz — pouco importa!
Se tudo à minha volta nada vale
Se tudo o que desejo — e eu desejo tudo —
É feito de mim só e mais nada.” (Poetas dos Açores 387)

     A data deste poema é a de 15 de janeiro de 1947. E nos versos que antecedem esta conclusão, a voz poética identifica a natureza desse “desejo tudo”:


Tenho uma dor horrível
Aqui dentro de mim,
Vertigem de amor, fome de ti,
De ti que tardas tanto.
E quem és tu afinal — desejo louco
De louco ideal já meio desfeito?
Não sei porque não vens — se existisses!
Ah! Se existisses…

Que a minha vida será sempre uma ansiedade,
Um voo em busca da miragem,
Um partir e não chegar.
[…]

Cheios de orgulho feroz
De serem belos, belos, mas só meus [os meus olhos]. (387)

     Quatro anos antes da viagem rumo à sua ambição de realização de um projeto de vida feliz, a jovem poetisa combina uma amálgama de aspirações pessoais que, claramente, passam pela vontade de realizar uma forte sensualidade, mas que vão muito mais além do desejo amoroso. A confissão à sobrinha-neta aos 79 anos de idade de que tinha encontrado a felicidade é bem o resultado ganhador de quem arriscou muito e venceu.
     Nos primeiros poemas, que Ruy Galvão de Carvalho juntou e classificou de “primícias poéticas de Otília Frayão,” sobressai muito intensamente o questionamento ao mundo para lá do Atlântico brumoso; por isso o receio de nunca mais se realizar e demorar-se eternamente numa vida-ansiedade, “Um voo em busca de miragem/Um partir e não chegar.” Não se pode, assim resumir esta ambição da poetisa a um mero capricho de moça casadoira. Antes, dever-se-á aqui identificar um desafio intelectual e sentido à vida e ao futuro. O organizador da antologia Poetas dos Açores identifica-a bem como “Otília Fraião, a mais açoriana de todas as poetisas nascidas nestas ilhas atlânticas, pois cremos que é aquela cujos versos trazem, vincadamente, a marca da sua origem natal, o drama de quem nasceu na solidão de uma ilha…” (384). Mas também não deixa de ser verdade que a faialense pode e deve ser enquadrada para além do seu género para se inserir assim no conjunto das vozes masculinas ou femininas que ao longo dos séculos de escritas açorianas foram registando o questionamento e a capacidade de imaginar outros mundos para lá da ilha em frente. Otília pertence a essa genealogia de ilhéus e ilhoas que partiram para não se limitarem ao arrastar das suas dores pessoais deslocados que se sentem nas ilhas, pelas mais diversas razões. O conceito açambarcador de diáspora suscita um discurso que amalgama e que rasura o individual para juntar num coletivo partidas e projetos individuais e diferenciados. Recorrendo ainda ao texto de Manuel Lopes, em “Os meios pequenos e a cultura” (1951), o escritor cabo-verdiano desafia o público faialense para a reflexão acerca de como os ilhéus podem e devem ultrapassar as contingências inerentes à delimitação espacial e à frágil discussão cultural. Esta é, aliás, a oportunidade para Lopes, num tom pedagógico e esperançoso, explanar os traços definidores do que ele designa de “meios acanhados”:


Ora temos que meio acanhado significa também limitação de iniciativa ou restrição de esforços particulares dada a carência de oportunidades que aí se verifica. Em consequência, carência de possibilidades de riqueza espiritual e material. Os meios acanhados não permitem nem livres voos nem livres marchas. O caso do ilhéu, por exemplo, é particularmente dramático. Um açoriano ilustre, o Prof. Vitorino Nemésio, escreveu algures que o verbo ‘estar’ é muito mais verbo para o ilhéu que o verbo ‘viver’. (9-10)

     O desafio de Otília Frayão torna-se duplamente difícil de se dizer nesse paradigma açoriano seu, também pela forma como irrompeu. Por um lado, pela circunstância da partida clandestina e desafiadoramente comunicada pela dificuldade da tradução ao seu companheiro de viagem, que pouco sabia da língua portuguesa. E por outro — esse um preço mais difícil a pagar na sociedade açoriana da altura —, por ser fêmea e dizer abertamente a vontade da sua sensualidade, de que são exemplo os versos que Ruy Galvão de Carvalho magistralmente isolará na introdução da nota biográfica da poetisa: “Todo o meu corpo: carne./Toda a minha alma: amor” (Poetas dos Açores 383).
     A persistência do silêncio em quase todas as frentes, quando se tenta conhecer o percurso de Otília Frayão, incentiva à descoberta da biografia e da escrita pouco divulgadas. Da parte dos Açores, o mito promove o romanesco da partida da Ilha do Faial na companhia de um navegador solitário inglês. Se por outro lado nos detemos no relato autobiográfico de Edward Allcard, o que sobressai é o humor e companheirismo entre a poetisa e o britânico, e uma ausência de sentimentalismo balofo; antes, a consciencialização progressiva do homem sensível à inteligência e aos dotes físicos da jovem mulher a seu lado, sem que esconda alguns momentos de atração física por ela: 

I relapsed into silence, content with the easy steering, half my mind on keeping a straight course and the other half on admiring, somewhat abstractedly, the excellent example of the female form posed in front of me. A good figure, I thought. Filled out in the right places, curved in where —
She looked up with questioning eyes. ‘What is?’ (I knew that ‘What is?’ in Otilia-language meant ‘What are you thinking about?’)
‘Oh. Thinking that your waist pinched in just enough to make room for a man’s arm.’
She did not understand, and inclined her head on one side, interrogatively,
‘What ees peenched?’
[Eu fiquei em silêncio, agradado pela facilidade das manobras, metade da minha atenção a tentar manter a proa a direito e a outra metade a admirar, de modo um pouco abstrato, aquele excelente exemplo de corpo feminino mesmo ali à minha frente. Uma bela figura, pensei. O volume nos sítios certos e a curva mesmo a jeito de —
Questionando-me com o olhar, ela perguntou-me ‘What is?’ (Na linguagem de Otília, isso queria dizer ‘O que se passa?’)
‘Eu! Estou pensando em como a tua cintura apetece o braço de um homem.’
Ela não percebeu, e pôs a cabeça de lado, interrogativamente, ‘What ees peenched?’] (207)

     Em forma de balanço, Allcard é verdadeiramente o cavalheiro inglês, sensato e sensível às ambições pessoais de Otília e às razões da partida da Ilha. Sendo que as questões ao nível da tradução são um veio condutor na narrativa da viagem entre o autor de Temptress Returns e Otília Frayão. Aliás, a dificuldade de compreensão entre um e outro parece funcionar como profilaxia nesse percurso sem retorno que a jovem faialense está a iniciar. Allcard tem consciência disso, e faz questão de ser através do seu pouco português e um pouco de espanhol em paralelo com o inglês básico de Otília que dá conta do desenvolvimento da relação de amizade entre ambos . Além do mais, num segundo momento, o autor integrará excertos de um diário escrito por Otília, que ela terá deixado ficar no barco aquando da partida de Casablanca para Inglaterra. Nesses excertos já traduzidos para o inglês nativo do autor, o leitor de Temptress Returns vai-se dando conta dos comentários da portuguesa em relação às dificuldades geradas pelo mau tempo; ou mesmo aquele momento em que acorda com fome e não tem coragem para pedir comida por não querer incomodar, ou compreender a escassez de mantimentos, uma vez que a viagem fora planeada apenas para um tripulante (197).
     A presente reflexão sobre a pertinência da vontade de Otília Frayão no desenho da sua vida e da sua escrita entre a década de 40 e início da de 50 não é de todo exaustiva, por várias razões que têm a ver com o silêncio das testemunhas familiares ou a separação do Atlântico que origina fechamentos na cedência de informação pessoalmente requisitada ao longo de meses.
     A análise das condições de partida de Otília Frayão à luz dos testemunhos escritos de Manuel Lopes e de Edward Allcard permitem chegar a este ponto com argumentos suficientes para encarar a decisão da poetisa faialense como um projeto de crescimento, em que a opção pela viagem clandestina apenas vem acrescentar o valor da afirmação de um posicionamento feminino que tem de ser estudado em maior profundidade no âmbito da literatura açoriana. É assim que neste esforço de micro-visão para se conhecer a escrita esquecida de Otília Frayão se pretende motivar o conhecimento crítico dos adiamentos a que são sujeitos certos autores e certas autoras que têm pensado os Açores, sendo a sua indexação uma abordagem insuficiente.
     No presente caso, há uma investigação que há de acontecer. Interessa sobremaneira compreender o percurso formativo da jovem Otília na Ilha do Faial, ou o caminho feito depois do voo de Casablanca. Que a viagem prossiga!


OBRAS CITADAS

Allcard, Edward C. Temptress Returns. New York: W. W. Norton, [©1953]. Impresso.
Barthes, Roland. Camera Lucida: Reflections on Photography. Trans. Richard Howard. New
     York: Farrar, Strauss, and Giroux, 1981. Impresso.
Carvalho, Ruy Galvão de. Poetas dos Açores. Angra do Heroísmo: Secretaria Regional de
     Educação e Cultura, 1988. Impresso.
Cela, Camilo José. Garito de hospicianos: Guiriguay de imposturas y bambollas. 4ª ed.
     Barcelona: Plaza & Janes, 1993. Impresso.
Cixous, Hélène. Le rire de la Méduse et autres histoires. Paris: Éditions Galilée, 2010[1975].
     Impresso.
Lopes, Manuel. Os Meios Pequenos e a Cultura. Horta, 1951. Impresso.
Silveira, Pedro da. “Notas sobre autores açorianos cujas obras devem merecer edição, as
     inéditas, ou serem reeditadas condignamente.” Boletim do NCH. 15 (2006). 19 de
     janeiro de 2015
Goulart, Lia. “Otília.” 26 de junho de 2007. 19 de janeiro de 2015 



Irene de Amaral is a Luso-American teacher and researcher. She is a native of New Bedford, Massachusetts. She lived in the Azores where she completed a B.A. in Portuguese and French Studies at Universidade dos Açores. She also holds a M.A. in Pedagogical Supervision by Universidade de Aveiro, and a PhD. in Luso-Afro-Brazilian Studies by the University of Massachusetts, Dartmouth. Since 2000 she has taught Portuguese language, and Lusophone cultures in Rhode Island, Massachusetts, and Vermont.







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