"Parte do meu universo lajense" – Sidônio Bettencourt
a montanha
…dormes sobre o azul do silêncio. desnudas a manhã e seus mistérios de glória e traças a rota dos navegantes sem rumo. sobranceiro, às vezes altivo, coração do bico dos pássaros, elevas o céu à condição de mar imenso com deuses dentro e dizes ao mar que a capital dos peixes é divina comédia de todos os sobreviventes. terra do espírito e do santo ergo-te as mãos em surdinas rezas, murmúrios breves do meu aconchego. tudo dorme na hora da contemplação. todos em peregrino andamento como as cordas do presépio em tempo de natal. as ruas, os recantos, os habitantes, a igreja, o sino, a atafona, o jardim, o coreto, a filarmónica, a garrafa de cerveja, o monumento, a pachorrenta voz da mornaça e do corpo que a acompanha. que brilho tão infinito no abraço do mar ao céu e o Pico dormindo na pacatez de seu corpo eruptivo…
a Ladeira
o paraíso. o meu lugar de sonho evocado na memória. a " ladeira" miradouro sobre a saliva dos mares o sol quente sob a montanha e os barcos de murmúrios distantes. o paraíso lá ficou esmagado pelo tempo e o Tempo que esmaga a minha saudade….o santuário da baleias e dos baleeiros e dos deuses é uma vertigem saudável de apelo inadiável… o paraíso. o meu… quero-te tanto. espera-me… A vida inteira.
símbolo eterno do paraíso. lugar limite e de transbordo. limita o mar e abre-se ao sonho. pedra desfeita sobre pedra. baía de ante maré fecundidade de peixe e silêncio de aquário passam lanchas iates navios de outrora. passa a viagem passa-me a vida. aqui do paraíso da " ladeira" te vejo neblina de luares sol quente abafado humidade serena dos teus verdes azuis. vigia da muralha calhau grosso lagoas de cão e de pano. daqui te vejo como ponta do presépio e segredo nocturno dos beijos molhados na fuga do pecado. daqui te vejo Castelete em meus castelos no ar…
O meu " Castelete"… Entre os azuis do mar e do céu… Lajes do Pico – santuário das baleias e dos baleeiros… Santuário dos Deuses.
a ponta do Caneiro
…era a noite das sombras, da vergonha do sol, da lua dos passos, era a noite sob nuvens cintilantes da cor do céu escuro. e a havia a luz dos faróis da ponta do cais e de barcos desalinhados sem peixe e as sereias sobre o muro do caneiro respiram fundo os heróis com nome na placa branca de jazigo pórtico memorial de Cabrita Reis. era noite ou princípio dela quando me deixaste vaguear pelo tempo, o tempo da isca dos anzois dos caldeiros de pedra e ferro e óleo besuntado nos corpos do ganha pão. e havia na força dos braços os barcos insulanos da nossa carne viva, do suor do sangue, da carne da baleia e dos pastos e um boieiro para te levar pelo Tejo fora. e havia o Maurício, o Garcia, o Palim e o Pé Leve, a justeza da razão o amor aos filhos, a balada e o coração. havia nós a passear sentados a ver pescar na rampa de varagem… e era noite, e eramos sombras. eramos a noite fretada na viagem sem retorno…
de onde vem de onde vens luz tão forte e cintilante ? para onde vais descendência do brilho solar ? cais a pique na mornaça da tarde e antecipas a noite no rigor anárquico da mututação dos olhos. é luz cor vida mistério montanha a arder. ardências do meu corpo sem vida a abrir-se ao fogo que derretes. poderia fazer pão quente e de milho, trigo centeio, de todos os cereias. poderia saltar a fogueira se fosses de s.joão. poderia ser anjo e vida estrela bússola polar. fugir de medo ou gritar vida amor contemplação. poderia tudo em mim a olhar-te encadeado. de onde vem essa luz que é tão minha tão nossa e de ninguém? e assim fico do lado do calhau grosso das poças do pano, do cão, do velho moinho de criar galinhas, assim fico curvado no êxtase dessa alegria contida a respeitar essa força que se renova há seculos sob meus olhos de criança… de onde vem esta luz de medos e mistério, amor e exaltação?…O Pico é um lugar sagrado e as Lajes catedral de todas as rezas, de todas os céus por pintar.
por cima do Muro
…tão só a árvore no meio da tarde de tanta gente. tão só. eu e ela. de regresso das lavadias de agosto sinto a solidão de seus galhos, seus frutos, filhos da terra, de deus, da Senhora e de ninguém. tão só como a montanha que todos sobem agarram e gritam liberdade tão perto do céu do mundo. o céu é cor do mar mas na solidão da árvore há uma nostalgia matinal que se prolonga na tarde na noite no luar no voo das cagarras. o Lima já passou. eu também. na solidão da árvore deixei uma lágrima que se prolongou muro fora. por cima do muro as minhas Lajes é uma vida de tanta gente, tanta gente, na solidão da árvore…
à Boca da Estrada
…de braços levantados ao céu da cor do mar tão azul breve, a estrada silenciosa matinal, o candeeiro solidário do frio da noite, caminho pé ante pé na busca de ti e sempre sozinho na paisagem lunar. fugiram dos tempos da missa em São Francisco, disseram um breve adeus e a ilha espera-me á Boca da Estrada onde namorávamos sob a guarda das árvores secas. víamos ao longe a bandeira do baile e o som dos Flechas melodia dos ouvidos de nossos corpos dançantes, escondidos de todos olhos maternais, na ânsia de um pedaço de amor proibido. víamos tudo e todos sem olharmos os gestos das nossas mãos pousadas no bico dos teus seios como morangos ou amoras silvestres. aqui à Boca da Estrada era domingo outro dia de manhã e ouvi o ritmo das nossas vidas perdidas e o senhor padre Madruga rezando em voz alta o pai nosso dos nosso pecados abençoados. era cedo, manhã deserta, e ouvi todas as vozes de tão longe dentro de mim. tu eras tudo e tudo era tão pouco reduzido a este silêncio de estrada…na nossa Boca…
Sidônio Bettencourt – Um dos mais importantes comunicadores de Portugal. Vive nos Açores. Trabalha na RTP (Radio e Televisão) e de lá se faz ouvir em consonância com o Mundo Ilhas a difundir a Cultura dos Açores e das comunidades da diáspora. Jornalista. Escritor. Poeta.