Morreu há pouco tempo, com noventa e um anos, René Girard, proeminente antropólogo do século XX, autor de “A Violência e o Sagrado” e conhecido pelo desenvolvimento da categoria do “bode expiatório”.
Refletindo a mundividência de alguns dos maiores génios literários ocidentais (Shakespeare, Dostoievski e Proust, entre outros), Girard embaraça, em simultâneo, as teorias maiores do século passado, como sejam a freudiana, a marxista e a do seu colega Lévi-Strauss.
Parte do pressuposto que o desejo é mimético e leva, com frequência, ao conflito e à violência. Desejamos aquilo que os outros têm, não tanto pelo valor intrínseco das coisas em si, mas porque queremos ser iguais àqueles que o possuem.
Um exemplo retirado de Proust: Madame Verdurin vive obcecada pela ascensão social e ridiculariza os salões do presidente francês e da duquesa de Guermantes apenas porque nunca foi convidada para eles, como desejaria, no seu íntimo. “São verdes, não prestam”, diria a raposa.
Com frequência, as culturas e as nações entram num análogo processo freudiano de transferência, veja-se o caso de Hitler, que conseguiu manipular toda a nação alemã contra os judeus, instituídos no papel de “bode expiatório”.
O “bode expiatório” tornou-se uma metáfora mas está na Bíblia como um animal concreto, para o qual se transpunham, através de um ritual sagrado, todas as culpas que ameaçavam a sociedade, abandonando-o, por fim, à sorte do deserto. Considerava-se, então, limpa a comunidade.
Os povos vizinhos dos judeus sacrificavam os primogénitos aos seus deuses. O sacrifício de Ifigénia demonstra que nem a Grécia racional fugiu a este impulso inconsciente. Os europeus foram encontrar variantes nas culturas das Américas.
Porque este mecanismo traz uma espécie de paz, é reconhecível na base de todas as mitologias e religiões como agradável aos deuses, tendo sido a comprovar esta tese do sacrifício ritual sagrado que o trabalho de René Girard mais se destacou.
Até aqui, parece que o desejo freudiano e a luta de classes marxista, bem como o determinismo, que exclui a liberdade humana, são, com efeito, as explicações adequadas à natureza e à História humanas.
A Paixão é o exemplo máximo, embora o Evangelho esteja crivado de histórias que revelam o mesmo princípio, como é o caso da mulher apanhada em flagrante adultério e que a comunidade quer apedrejar (“Quem está livre do pecado que atire a primeira pedra”). Agora, Deus não está do lado dos acusadores mas identifica-Se com a vítima.
Jesus Cristo parece ser um bode expiatório, se olharmos à palavra de Caifás: “Vós não entendeis nada, nem vos dais conta de que vos convém que morra um só homem pelo povo, e não pereça a nação inteira” (Jo 11,50).
Um cristão é treinado desde o batismo nestas verdades: perdoar setenta vezes sete vezes, amar até o maior inimigo, identificar-se com a Vítima absoluta… Mas é preciso lembrá-lo àqueles que pensam que o Cristianismo é uma religião igual às outras, seguindo o modelo psíquico de todas, desde as eras mais primitivas.
Embora René Girard se tenha convertido, não é um filósofo nem um teólogo – nem é preciso que seja. Todavia, quer o filósofo quer o teólogo encontram no trabalho dele uma razão, a contrario, a favor do facto do Cristianismo não ser uma criação humana, pois que escapa a um dos arquétipos do nosso pensamento natural.
Por incrível que possa parecer, René Girard nasceu no dia 25 de Dezembro… e o tempo da sua morte também não deixa de ser simbólico… para quem passou a vida a estudar o símbolo, é obra!