Correntes d’Escritas – 2016
Nada acaba no fim…
Claro! Começa a acabar muito antes… Vai acabando aos poucos.
Parece de propósito meterem-me numa mesa com um título destes no ano em que vou fazer 70 anos. É isso. Humor negro da Manuela Ribeiro.
Pois é. Estou a ficar deveras antigo. Sinto-me como me dizia há tempos um amigo: Sou bem antigo; sou do tempo em que o arco-íris era a preto e branco.
Não estou a exagerar nem queria também vir para aqui granjear a comiseração do público, mas o real é real e dele não há que fugir. Conto uma história ocorrida comigo no verão passado. Andava eu de férias nos Açores – e esse pormenor é importante pois significa que eu estava no meu melhor em termos de aparência, cara de verão, bronzeado e tudo. Pois bem. Estava eu num café nas Calhetas, terra da minha família materna em negociações com o homem a quem pago o cuidado pelo jazigo do meu avô quando, do lado, ouço: Estou a reconhecer a voz. Posso ter o prazer de o cumprimentar? Voltei-me e encarei com um moço de uns trinta anos. Pois claro! Com todo o gosto. Hesitante e quase em recuo, diz-me ele: Desculpe. Eu pensava que estava a falar com o Dr. Onésimo Teotónio Almeida, do Pico da Pedra, mas ele é muito mais novo que o senhor. Expliquei então ao jovem que era eu o próprio. Ele procurou recompor-se e inventou uma maneira de sair daquele embaraço: Ah! É que a imagem que eu tenho de si é do tempo em que o senhor ainda não pintava o cabelo.
Pois é. Ele tinha a minha imagem do tempo em que eu fizera uma série de programas para a RTP-Açores. E vejam lá a data em que isso foi: a mesma das primeiras Correntes d’Escritas. Conclusão: nada acaba no fim, tudo já começou no início destas Correntes. Há 17 anos. E por isso já me põem sempre a falar no fim para ser mais fácil corrigir o programa quando eu desaparecer: basta cortar o último da lista sem ter de se alterar nada do resto.
Tenho que abrir um parêntese para contar uma outra estória ocorrida na sequência da primeira.
Já de regresso aos States, estava eu em casa da Carmen, uma prima minha que casou numa família muito divertida. Um dia, uma sua cunhada reencontrou uma antiga amiga que não via há muitos anos. Toda cheia de franqueza (devo dizer que essa é uma característica de marca da gente da minha ilha, S. Miguel), a amiga perguntou-lhe: Eh, mulher! Para onde é que foi a tua beleza? A cunhada da Carmen não se conteve e disparou: Foi passear com a tua!!!
Esta conversa sobre decadência, sobre este acabar-se aos poucos, lembra-me imediatamente de dois poemas de dois grandes poetas açorianos. O primeiro é do Álamo Oliveira, tão bom poeta como romancista. Diz assim:
ninguém sabe o malefício dos anos
de que é capaz. a poalha dos dias cai
sobre o corpo sobre a mente
e o sol fica fosco poente precoce
e abandonado. o ranger das dobradiças
dos ossos faz-se ouvir durante a noite
como pesadelo engordando de esclerose e vazios.
é tudo tão natural que até a poesia faz mal:
azias metafóricas colesterol desrimado
versos em ácido úrico e imagens de pedra
rolando pelo rim como se a idade não cansasse.
ninguém sabe o malefício dos anos
como abre a porta à morte e a faz sentar
na sala do coração como térmita abusadinha
roendo roendo a vida até que se vai
com aquele seu andar de piranha ou de poeta
que se aborreceu de o ser…
Como vêem, o poeta também não acaba no fim. Vai-se acabando aos poucos.
Contei ao serão a um grupo de amigos esta que insistiram para que a contasse aqui. Faço-o por se integrar no tema:
Há uma figura da vida nacional portuguesa que está a chegar ao fim da sua vida pública, e que muitas más línguas insistem estar a acabar-se há tempos, foi abordado por José Sócrates que lhe perguntou em desafio: O Senhor Presidente tem dado condecorações a tanta gente; quando me vai dar uma a mim? O Presidente respondeu: Mas você já tem uma pulseira!
O Manuel Valente perguntou-me se eu não ia falar das eleições americanas. Claro que para o fazer é preciso que encaixe no tema deste painel. Só me ocorre uma anedota reaccionária sobre uma figura que os republicanos querem ver acabada e que eu espero bem seja a próxima presidente dos EUA. Tendo deixado bem explícito, posso então avançar:
Viajava Hillary Clinton num jeep em campanha eleitoral pelo deep South, terra de gente conservadora. Era já fim de um dia de intensa actividade e o motorista cansado mediu mal o tempo que uma vaca velhinha demorava a atravessar a estrada. Ainda tentou travar, mas sem êxito. Matou-a.
Hillary decretou imediatamente: Não quero amanhã notícias em parangonas nos jornais! Vá já procurar o dono do farm e diga-lhe o que aconteceu. Pergunte-lhe quanto quer de idemnização e pague. Eu aguardo aqui e vou aviando e-mails.
O homem foi mas nunca mais apareceu. Melhor: apareceu quatro horas depois podre de bêbado. Face à fúria de Hillary, ainda conseguiu explicar: Descobri a casa e o dono do ranch estava lá. Expliquei-lhe que era o motorista de Hilary Clinton e contei o que se passou: que, sem querer, eu tinha matado the old cow. Olhe, ele chamou logo a família toda e quis fazer uma festa… Foi um tal comer e beber e só agora me deixaram sair!
Fora do tema, acrescentarei apenas um pormenor de interesse lusitano sobre as eleições americanas, agora sobre Trump: finalmente os portugueses ficam a saber a origem etimológica da palavra trampa.
Os ouvintes estão certamente a achar-me pessimista. Mas olhem que não. Desde que recebi o tema para esta mesa, comecei a tomar nota de tudo o que tinha a ver com fim e acabado. Afinal, a minha recolha só durou um dia. Fiquei logo com material para um livro que nem a Guerra e Paz, de Tolstoi. De entrada, deparei no Expresso online com um artigo que começava assim:
Ontem fui almoçar ao Futuro e não gostei. O estabelecimento está com um ar desleixado, a lista é pouco variada, o serviço demorado e a clientela escasseia. A comida ainda é aceitável mas já foi melhor. Não recomendo o Futuro aos meus amigos. Nem se recomenda o Futuro que vamos deixar às novas gerações.
No Fórum Económico Mundial de Davos, que reúne anualmente a elite empresarial e política do planeta, um estudo da fundação da velejadora britânica Ellen MacArthur, em parceria com a consultora McKinsey, deixa qualquer um muitíssimo preocupado sobre o futuro do planeta azul.
Mal tinha acabado esse artigo, estava eu a fazer uma ronda pela imprensa internacional, dei de caras com esta notícia:
Stephen Hawking anuncia que mundo pode autodestruir-se nos próximos cem anos
Stephen Hawking advertiu que a humanidade está em perigo de se autodestruir nos próximos cem anos à medida que rapidamente progredimos nos domínios da ciência e da tecnologia.
[…] Não é esta a primeira vez que Hawking nos avisa de que estamos perante um desastre por nós próprios provocado; em 2014 declarou que a inteligência artificial poderá significar o fim da espécie humana.
Juro que não estou a inventar. Tudo notícias reais, e de gente ao pé de quem eu nem a Zé Ninguém chego. Só desgraças prognosticando o fim. A única vantagem para os portugueses, aliás, é que o anunciado fim do mundo vai acontecer muito antes de Portugal acabar de pagar a dívida nacional.
Não exagero nada. Até há dias vi uma notícia sobre o inesperadamente renovado interese numa opereta surgida em Paris em 1972, que ainda guardo em versão disco longplay e por isso nunca mais tinha ouvido. É Mégalopolis, de Herbert Pagani, o anúncio profético de uma catástrofe que arrasa a Europa inteira. A notícia que li diz escarrapachadamente que, face aos acontecimentos actuais, essa opereta já não é profecia, mas pura realidade. Voltei a ouvir partes e lembrava-me perfeitamente de muitas tiradas da letra. O refrão, por exemplo – C’ est le début de la fin! – encaixa em cheio nesta mesa. É o princípio do fim. E vejam lá: de há quarenta e quatro anos. Tudo começa mesmo muito antes do fim.
Mas registem ainda lá mais um exemplo do nosso tema “nada acaba no fim”. Já nos anos sessenta se falava na Terceira Guerra Mundial, que seria o fim de tudo pois daria cabo do globo. Contava-se aquela de um caça americano a lançar sobre a China uma bomba de hidrogénio e o fogo a alastrar-se por todo o hemisfério oriental do globo terrestre. Simultaneamente, um caça chinês fazia o mesmo sobre o hemisfério ocidental. A terra não era mais que uma imensa bola de fogo e, algum tempo depois, um deserto de cinzas. À superfície da terra, dois únicos sobreviventes – um casal de macacos, refugiados em cima de um embondeiro num recôndito ermo de África. Então o macaco volta-se para a macaca e, todo animado, propõe-lhe: Vamos começar isto de novo?
Este tema do nada também começou cedo a meter-se comigo. Há 43 anos, estava eu de fresco nos EUA e colaborava no Portuguese Times, de New Bedford, Massachusetts, com uma crónica semanal em que fazia as minhas críticas ao regime salazarista, ao tempo prolongado em Marcelo Caetano. A comunidade portuguesa, nada habituada a críticas a Salazar, reagia amiúde, chamando-me nomes que a minha compostura me não permite citar. Escreviam cartas ao director dizendo que os meus artigos, mesmo quando se davam ares de inocentes, eram sempre contra os valores portugueses (isto é, salazaristas). Então um dia eu resolvi escrever uma “Meditação sobre o nada” que começava assim:
Hoje não vou escrever sobre nada. […] Quero fazer um artigo que não seja incomodativo.
A minha prosa não será envene-nada. Não será domi-nada por nenhuma ideologia apaixo-nada, pre-orde-nada e segundintencio-nada a criar qualquer atitude insubordi-nada naqueles que me lêem
Não levantará problemas sobre a vida alie-nada da nossa sociedade domi-nada por determi-nada falange bem intencio-nada.
E fui por ali abaixo marcando em itálico aquelas terminações em nada, até concluir nestes termos:
E que esta prosa, inflacio-nada de nada não deixe [a nossa gente], no fim de contas, outra vez indig-nada.
[…] Não falará de gente política contami-nada pelo dinheiro e pelo poder […] Nenhuma frase será proferida que contenha quaquer ideia contami-nada e que, depois de rumi-nada, possa vir a ser desbobi-nada em conclusões perigosas por parte dos leitores.
[…] Afinal, para quê falar de tudo isto? Faça-se uma for-nada de matéria conde-nada dos que teimam em dizer que eles existem, que a instabilidade por eles ocasio-nada passará.
[…] Pura meditação sobre o nada, ela não quis revelar nada de incomodativo acerca de nada, a não ser o próprio nada que fica escrito e o nada de quem escreve. Porque afinal nada disse. Só disse NADA.
Como vêem, nada acaba no fim. Começa tudo muito atrás, quase no princípio.
Ora, já que me pus para aqui a autocitar-me (ou a auto-excitar-me), permitam-me que acrescente mais uma:
Em tempos, tinha eu acabado de virar sexagenário (já repararam que esse termo assenta bem melhor no pessoal na casa dos vinte?), o director de uma nova revista dedicada à terceira idade pediu-me colaboração regular. (Estão a ver? Eu ainda a anos da terceira idade e já me pediam para escrever sobre ela. Nada começa no fim.) A revista ia chamar-se Rugas e eu enviei a minha primeira crónica com o título “(Ver)rugas”. Nela contava que na nota biográfica inserida na badana de um livro que publiquei em 1987 (vai fazer 30 anos!), escrevera de mim próprio: Acordou há dias com 40 anos. Cá está um caso de não acabar no fim. A sensação do fim começou ali, aos quarenta anos. Bem. Depois, nessa mesma crónica, narrei um senior moment, como os americanos chamam a um primeiro sinal de envelhecimento. Tinha uma viagem agendada para Montréal e pensava que era dali a uma semana, quando de repente me apercebi ser logo no dia seguinte. Já agora, cito um pouco dessa crónica:
Muito mais senior moments desses virão. E bem piores. O outro já avisava: Primeiro a gente esquece-se dos nomes; depois, das caras; a seguir, esquecemo-nos de fechar a braguilha. Mas o pior, comentou um ouvinte, é depois, quando nos esquecemos de abri-la.
Um oxímoro, este começar a série a lembrar o esquecimento. Pois é. Mas aí vai outra, no caso de prefirem, a amnésia que, no revestimento erudito do significante, consegue esconder um pouco a dureza da realidade. Como a do doente no consultório: Senhor doutor, nos últimos tempos estou a queixar-me muito de amnésia. O médico a perguntar: E há quanto tempo se queixa disso? O doente surpreendido: Senhor doutor, há quanto tempo me queixo de quê?
Ora, a direcção da revista não quis publicar a crónica porque o meu humor era demasiado cru. Ela ficou inédita até hoje. Não se perdeu nada, está visto, e até serve agora para encher esta charla sobre o abstruso tema de nada acabar no fim. Porque tudo começa mais cedo, como espero que esteja a ficar mais e mais claro. A verdade, porém, é que essa minha colaboração acabou antes de começar. E eu até já tinha alinhadas outras estórias para os números seguintes, como a do velhote que se queixava: Eu quando vejo uma moça bonita do outro lado da rua ainda me entusiasmo e atravesso a rua para a ver melhor, mas quando chego lá já não me lembro do que é que eu ia fazer. E também aquela dos dois velhinhos a conversar sobre a vida e um deles a exclamar todo feliz: A minha mulher é um anjo. E o outro a reagir: Tens muita sorte. A minha ainda está viva.
É tempo de acabar. Não esqueço, porém, ter atrás referido que o tema dado a esta mesa me fizera de imediato lembrar dois poemas de poetas açorianos. Já li o do Álamo Oliveira e agora vou então fechar com a leitura de outro, de Pedro da Silveira, poeta florentino falecido já neste milénio. O título parece uma glosa ao mote desta mesa: ACABADO, MAS NÃO TANTO.
(Antes de lê-lo, todavia, farei questão de apontar que circula por aí na Internet uma frase a tentar demonstrar que a língua portuguesa é muito subtil, mas afinal trata-se da tradução de uma famosíssima frase da actriz Zsa Zsa Gabor e que eu já citei numa crónica de há trinta anos. É sobre a diferença entre completo e acabado. Explicava a famosa estrela de Hollywood, de origem húngara: Um homem não está completo até casar-se. E então fica acabado.
Mas vamos adiante ao poema do meu patrício açoriano Pedro da Silveira:
Agora restam-me só dois dentes
e a vista já não é o que antes era;
às vezes sofro de azias e náuseas
e vêm dias, como hoje, em que nem reparo
nas mulheres em flor que passam a meu lado.
É Fevereiro ainda, mas o tempo
é como se já fosse a Primavera:
um dia de sol, com flores coroando árvores
no jardim à beira de que estou parado
esperando um autocarro que não chega mais.
Olho as árvores enflorando, a relva verde-tenro,
e também uma nuvem que o sol da tarde
faz mais clara no azul claro do céu.
Vejo isto, e vendo-o esqueço
os dois dentes que só tenho, um deles cariado,
a vista baça e tudo o mais que diz
que o meu corpo envelheceu-
como ainda há poucos dias me lembrou o gesto
da rapariga que quis dar-me
o seu lugar no eléctrico à cunha,
de manhã à hora de a caminho do emprego.
Sim; o dia parece mesmo de primavera
e com isso apetece estar vivo, embora
sabendo que os anos andaram sobre o corpo que temos
e não renovamos, com rebentos e flores,
como as árvores que vou vendo enquanto não chega
-vem aí, finalmente!-
o autocarro que há bocado espero.
Abalado, esqueço de todo os dentes que já mal tenho
e a minha memória, nova agora como a tarde clara,
não tem fundo para além do dia de hoje
e das flores do jardim de há pouco.
Sim; mas há as coisas que às vezes me lembram
(e nem sempre sem que doa ou amargue)
que já não tenho a idade em que me diziam
-Pedro, vê lá o que fazes, toma juízo!
(Olhem, por lembrar:—esta manhã gostei de ver
como o meu canário começava o seu dia cobrindo
a canária que anteontem lhe pus na gaiola e agora
é a razão por que não me acorda como dantes, cantando.)
[de Poemas Ausentes (1999)]
Este belo poema acaba com um quase happy end. E é com ele que termino, porque prefiro acabar também com a nota positiva do canário feliz em manhã de primavera cobrindo a canária.
Orson Wells, quando ouviu uma crítica aos happy ends dos filmes de Hollywood, comentou: Tudo depende de onde se faz acabar a história. Portanto, não vou prolongar a minha porque poderia acabar mal. Ou melhor: poderia acabar pior. Todavia, se os ouvintes acharem que ela apesar de tudo acaba mal, não me darão nenhuma novidade. Porque nada acaba no fim, ela já começou assim desde o princípio.
Providence, Rhode Island
16 de Fevereiro de 2016
Onésimo Teotónio Almeida