REVELAÇÃO
Mário T Cabral,
10 de Julho AD 2016
A menina implora ao pai que não corte a relva, de modo a que sejam poupadas as florinhas amarelo vivo que salpicam o verde. Na verdade, será um crime, concorda o pai.
Também ele fica sempre indeciso entre a elegância do tapete verde bem aparado, que põe em destaque os arbustos e as árvores; e a graça das florinhas selvagens no desarranjo da relva a crescer por si, onde os cães parece que nadam, ao passar, sem que se lhes vejam as patas.
Ele contempla os seus cães agora a dormir à sombra, virados com as quatro patas para cima. As almofadinhas pretas sobressaem no aveludado da pelagem. Não são de peluche, são mesmo verdadeiras. Sorri, profundamente comovido.
Ao princípio não percebe o que é aquilo: a terra seca explode. São os pardais, que se banham no tanque, aproveitando as folhas dos nenúfares como plataforma; e depois rebolam-se na terra, como quando a mulher enrola os rissóis em pão ralado.
Tem nas mãos um pêssego e perde-se no universo daquela pele aveludada. Não admira que aquela pele se tenha tornado sinónimo de beleza absoluta. Com uma das mãos rola o fruto muito devagar na concha da outra mão, como se fora um planeta em órbita.
Pelo canto do olho, vê uma chama que se move, pequenito bocado de sol. Chega a pensar tratar-se dum reflexo do pêssego no vidro da cozinha. É o pisco — os piscos voltaram, assim como os canários, em seu mais suave amarelo.
E, à noite, os cagarros, com seus gritos paradoxais. Já pensara que o silêncio da casa estava repleto do canto das aves, fosse de noite ou de dia. Acordara com os melros pretos a aquecer as vozes à proporção da luz inaugural.
— Não passa que não chova ainda hoje. — exclama a mulher: — Está um abafamento que não se pode! Que Verão!
Ele não responde. Agora contempla uma lagartixa sem rabo que sobe pela rede da janela, procurando entrar. Há, com efeito, um bafo intenso que sobe da terra. Se chover, será uma graça, não será necessário regar o jardim. A erva crescerá ainda mais, mas nada paga o cheiro da terra molhada, a água caída do céu.
E começa a chover, de facto. É uma chuva direita, calma, persistente. As janelas podem continuar abertas, sem risco. Os pingos arrepiam a superfície da água do tanque. Os nenúfares brancos começam a navegar, impercetíveis. Acompanham-nos os jacintos de água, cuja flor roxa vive apenas um só dia. Põem a descoberto os peixes vermelhos, que abrem a boca aos pingos, por entre os papiros, refletidos.
O dia ficou todo alterado. Seriam necessárias três horas para cortar a relva e mais três para regar todo o jardim. Retirando as horas do almoço e da sesta, o sábado estaria ocupado por completo.
Sem planos, o dia abriu-se, despido de sentido e de nome próprio. Não tinha a certeza se tinha perdido ou ganho um dia. Que nome tinha aquele dia? Dava a impressão que tinha vindo de longe – ou, então, que nos outros dias o jardim como que estava escondido, assustado com o matraquear da máquina e com a violência da mangueira.
Tudo indicava que o jardim estava a convidá-lo. O jardim dizia que não era dele. O jardim não era dele. O dia não era dele. A vida não era dele. Nada era dele. Tudo lhe era ofertado.
Havia revelação em todo o lado. Era como se não existisse. Continuava a rodar o pêssego na mão mas tudo indicava que era o pêssego que se rodava a si próprio, obrigando-o a servi-lo. Não tinha nada para dizer.
— Que é que se passa com os guardanapos de papel? — perguntou a mulher.
— Hã?
— Tem aqui escrito: “Cuidado! Não usar!”.
Lembrou-se, entretanto, que tinha recolocado o bloco-notas sobre os guardanapos de papel, onde era o seu lugar. Tinha deixado um recado no lava-loiças porque usara um líquido desentupidor, durante a noite, mas ele próprio já resolvera o problema, logo de manhã. Também aqui havia revelação.
— Não há problema. Podes usar.
Saiu para o jardim, debaixo de chuva. A filha também quis ir correr para a relva, rindo, correndo, brincando com os cães. Parecia um grande pássaro, acompanhado de borboletas brancas.
Ele contempla os seus cães agora a dormir à sombra, virados com as quatro patas para cima. As almofadinhas pretas sobressaem no aveludado da pelagem. Não são de peluche, são mesmo verdadeiras. Sorri, profundamente comovido.
Ao princípio não percebe o que é aquilo: a terra seca explode. São os pardais, que se banham no tanque, aproveitando as folhas dos nenúfares como plataforma; e depois rebolam-se na terra, como quando a mulher enrola os rissóis em pão ralado.
Tem nas mãos um pêssego e perde-se no universo daquela pele aveludada. Não admira que aquela pele se tenha tornado sinónimo de beleza absoluta. Com uma das mãos rola o fruto muito devagar na concha da outra mão, como se fora um planeta em órbita.
Pelo canto do olho, vê uma chama que se move, pequenito bocado de sol. Chega a pensar tratar-se dum reflexo do pêssego no vidro da cozinha. É o pisco — os piscos voltaram, assim como os canários, em seu mais suave amarelo.
E, à noite, os cagarros, com seus gritos paradoxais. Já pensara que o silêncio da casa estava repleto do canto das aves, fosse de noite ou de dia. Acordara com os melros pretos a aquecer as vozes à proporção da luz inaugural.
— Não passa que não chova ainda hoje. — exclama a mulher: — Está um abafamento que não se pode! Que Verão!
Ele não responde. Agora contempla uma lagartixa sem rabo que sobe pela rede da janela, procurando entrar. Há, com efeito, um bafo intenso que sobe da terra. Se chover, será uma graça, não será necessário regar o jardim. A erva crescerá ainda mais, mas nada paga o cheiro da terra molhada, a água caída do céu.
E começa a chover, de facto. É uma chuva direita, calma, persistente. As janelas podem continuar abertas, sem risco. Os pingos arrepiam a superfície da água do tanque. Os nenúfares brancos começam a navegar, impercetíveis. Acompanham-nos os jacintos de água, cuja flor roxa vive apenas um só dia. Põem a descoberto os peixes vermelhos, que abrem a boca aos pingos, por entre os papiros, refletidos.
O dia ficou todo alterado. Seriam necessárias três horas para cortar a relva e mais três para regar todo o jardim. Retirando as horas do almoço e da sesta, o sábado estaria ocupado por completo.
Sem planos, o dia abriu-se, despido de sentido e de nome próprio. Não tinha a certeza se tinha perdido ou ganho um dia. Que nome tinha aquele dia? Dava a impressão que tinha vindo de longe – ou, então, que nos outros dias o jardim como que estava escondido, assustado com o matraquear da máquina e com a violência da mangueira.
Tudo indicava que o jardim estava a convidá-lo. O jardim dizia que não era dele. O jardim não era dele. O dia não era dele. A vida não era dele. Nada era dele. Tudo lhe era ofertado.
Havia revelação em todo o lado. Era como se não existisse. Continuava a rodar o pêssego na mão mas tudo indicava que era o pêssego que se rodava a si próprio, obrigando-o a servi-lo. Não tinha nada para dizer.
— Que é que se passa com os guardanapos de papel? — perguntou a mulher.
— Hã?
— Tem aqui escrito: “Cuidado! Não usar!”.
Lembrou-se, entretanto, que tinha recolocado o bloco-notas sobre os guardanapos de papel, onde era o seu lugar. Tinha deixado um recado no lava-loiças porque usara um líquido desentupidor, durante a noite, mas ele próprio já resolvera o problema, logo de manhã. Também aqui havia revelação.
— Não há problema. Podes usar.
Saiu para o jardim, debaixo de chuva. A filha também quis ir correr para a relva, rindo, correndo, brincando com os cães. Parecia um grande pássaro, acompanhado de borboletas brancas.
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores, é Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu livro de ficção, O Acidente, ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.