Não queria entrar aqui em antigas e inúteis discussões sobre literatura e geografia, ou sequer sobre literatura e identidade, mas um diário como este de Joel Neto, A vida no campo, obriga-me, pelo menos, a contextualizá-lo num mundo de escrita mais vasta do que a portuguesa, nomeadamente na sua versão açoriana. Uma das frases lapidarmente definidoras de alguns dos mais conhecidos, respeitados e duradouros escritores sulistas norte-americanos, desde há muito uma aparente influência entre nós, particularmente entre as novas gerações, é “south toward home/para o sul a caminho de casa”, que aliás serve de título a um estudo e biografia colectiva de Margaret Eby, e aparece desde há muito como uma premissa temática e demarcadora desses autores que escolheram a sua geografia natal para situar, ver e rever a condição humana tal como é observada e vivida no lado de fora da sua casa. Numa outra conhecida autobiografia, North Toward Home, intitulada, agora com alguma ironia, por outro autor sulista, que foi o famoso editor mississippiano da nova-iorquina e culta revista Harper’s, Willie Morris, fala-se no “território do coração” para separar uma geografia de mera vivência opcional ou profissional de outra geografia da terra natal, do “território” em que nascemos e crescemos, e que nos habita, irremediavelmente, para sempre. Desde prosadores como Vitorino Nemésio a João de Melo, Vasco Pereira da Costa e Joel Neto, esta tem sido uma marca seminal nas suas obras – “a viagem para dentro”, o reencontro com as origens, o confronto do passado com a reinvenção deliberada de personagens que um dia partiram em busca de vida e razão de ser, e que depois regressam também num acto consciente de resgate do seu mais profundo ser, a memória sempre desperta para o que, activamente, nos move e comove adentro do espaço único onde foi ancestralmente plantada, e ao longe cultivada, o que, ainda e sempre, chamamos de identidade, pessoal e colectiva. Não há cosmopolitismo num vácuo linguístico e cultural – só a capacidade homérica, de que os portugueses foram os primeiros, numa Europa pós-grega e romana, de dar provas da sua necessidade concreta e simbólica de encontrar e conviver com outros mundos e modos de vida. Este diário de Joel Neto, entre todos os diários escritos por açorianos, é a mais viva manifestação literária de homenagem a esse “território do coração”, e, diria, marcante para uma geração que vem depois da minha, a geração nascida e educada num Portugal mais ou mesmos livre e mais ou menos regenerado, a geração de uma época em que a distância, apesar do que o próprio escritor afirma aqui a certa altura, é já uma noção mais “teórica” do que existente ou consequente, uma nova realidade em que qualquer recanto do mundo pode ser visto ou testemunhado em tempo real, como dizem, em que o outro quase deixou de o ser, ou então seremo-lo todos nós, e em toda a parte. “O tipo de urbano em que eu me estava a transformar – escreve o autor já a encerrar o seu diário, e fazendo um balanço da vida no seu regresso à Ilha Terceira após vinte anos de Lisboa – é um exercício de estilo. E o problema é que não é mais nada além disso”. A metáfora primeira desta sua vivência na ilha redonda é o voo constante do milhafre, simbolicamente o mais açoriano de todos os pássaros: “Não há desespero na circularidade do seu voo. Ninguém que viva numa ilha ignora a força de um voo assim”. Pois não. Será também uma espécie de liberdade cercada, que não nos deixa nem nos oprime, ao contrário do que porventura pensam os continentais de todas as latitudes, nada menos aprisionados em terra por todos os lados.
A vida no campo cobre um período de tempo que vai de Setembro de 2014 a Setembro de 2015, a essa data já quatro anos na Terra Chã, freguesia situada nos arredores de Angra do Heroísmo, vizinha de um lugar e de uma outra freguesia quase mítica na Ilha Terceira: São Carlos, pelas suas belas quintas e imaginado sangue azul, e São Mateus, pelos seus destemidos pescadores, vigiados pela torre altiva da sua igreja, que parece policiar o Atlântico e em aviso perpétuo contra todas as tentações e eventuais corsários. Tão circular como o voo do milhafre é a vida do autor, da sua companheira Catarina, e dos cães Melville e Jasmin. Um regresso, por mais temporário que pensamos ser, envolve sempre reconstruções do que havia ficado inacabado, e refiro-me tanto às coisas práticas do nosso quotidiano como, ou muito especialmente, a recriação, por assim dizer, de relacionamentos e hábitos familiares, de afinidades de próximas e electivas com toda uma vizinhança, essa da memória e da saudade para se tornar de carne e osso, diariamente reencontrada. A semântica de “casa” não tem a carga emotiva do inglês “home”, mas tem, definitivamente para nós ilhéus, o pesado significado do território das nossas raízes, o chão nativo das nossas vidas. Cada dia que Joel Neto e Catarina acordam olham para a casa que havia sido do avô do autor, José Guilherme, que é também personagem de ficção, mais recentemente no grande romance do nosso autor, que é Arquipélago, imaginam mais uma obra dentro ou paredes afora, todo um universo sentimental a ser revivido por um e desfrutado pelo outro como que num oásis que lhe aparece após a travessia metropolitana da cidade de Lisboa. De resto, muitos dos que agora reencontramos pelas ruas e estabelecimentos comerciais da Terra Chã são do mesmo modo conhecidos dessas páginas anteriores. A obra de Joel Neto é já uma confirmação faulkneriana de que um pequeno e delimitado território natal é o único espaço essencial a uma outra grande arte literária, toda a humanidade aqui concentrada, podendo ser vista de uma só olhada, como um dia disse Eudora Welty, outra escritora sulista, toda a comunidade perscrutada no seu conjunto a qualquer momento na normalidade dos dias, como nas horas de aflição. Neste diário, à semelhança da referida ficção que o precedeu, paira uma grande assombração – o terramoto do Primeiro de Janeiro de 1980, que para sempre mudaria a face da ilha. Por certo que a prosa de um diário estará algures entre a realidade e a ficção, a memória recriando tempos perdidos, e a imaginação reinventando personagens e situações mesmo debaixo do olho do escritor. Se se pode falar de um retrato de fatias-de-via, também algures entre o que temos por real e surreal, de uma pequena povoação açoriana, este é um primoroso acto literário desse género. Joel Neto, pertencente a uma geração literária açoriana etariamente entre a minha e uma outra que aí vem, dá continuidade ao cânone testemunhal da existência a meio mar, de uma história feita de incessantes partidas e regressos, uma ode simultaneamente original e de imediato reconhecida ao modo como vivemos entre o riso e o medo. Não é sem mais nem menos que por várias ocasiões ele relembra ou faz chamamentos a outros escritores e poetas das ilhas, alguns dos quais determinantes na decisão de se tornar escritor, de ver neles e na sua obra a possibilidade de permanência que só a grande literatura (nos) permite. Quando nos diz deles, Joel Neto diz-nos sobretudo de si próprio.
“Mas, para falar – cito alguns passos que dizem respeito aos nossos escritores mais próximos, e ainda de outras línguas e terras distantes, que antecedem a frase que me serve aqui de epígrafe – dos lugares de onde vem este diário, acho que terei primeiro de falar dos poetas. Dos que cantaram o campo e dos que cantaram este campo: Caeiro e Ramos Rosa, Félix e Marcolino… Depois terei de falar dos narradores: dos destas ilhas e dos de outras ilhas ainda, inclusive as rodeadas de terra por todo o lado – Nemésio, João de Melo, Álamo Oliveira; Hardy, Faulkner, Steinbeck… Mas não posso deixar de falar de José Daniel Macide e da sua Crónica das Terças, que na minha infância abria a última página do Diário Insular. Quando hoje releio Balada para Angra, acho que estava tudo lá”.
Joel Neto não vai muito a Angra, a não ser aos sábados de manhã, para descer a Rua da Sé e olhar, suponho, o Monte Brasil, a cidade que contém toda a história de Portugal em terra e debaixo de água. Foi a cidade da minha primeira imigração, no ano lectivo de 1963/64, quando entrei no então Liceu Nacional de Angra do Heroísmo. Os de fora, como eu, não tinham uma identidade geográfica precisa, éramos simplesmente “do monte”. Hoje sabemos que éramos da terra e do mar, muito mais do que qualquer citadino preocupado, acima de tudo, com o que este autor diz de si próprio e de outros em Lisboa – com o “estilo” ou a “pose”. Não será mera coincidência que os escritores portugueses, na sua vasta maioria, quase só brilham nos seus regressos às origens, aos pequenos territórios do seu coração, o resto ficando, também quase sempre, como meros “exercícios” literários, a linguagem sobressaindo, quando sobressai, como o único personagem memorável. Lionel Trilling, o grande ensaísta judeu-americano, nova-iorquino de nascimento e vivência, advertia constantemente os seus colegas escritores para a essencialidade artística da autenticidade, o que faz o leitor suspender toda a sua vida e crenças para testemunhar uma outra humanidade à sua volta. É disto que falo na minha leitura de A vida no campo, uma amostra, perdoem-me o atrevimento, de como uma sociedade convive entre o passado e a modernidade e pós-modernidade da nossa época. Estamos, afinal, em casa no mundo entre um cerrado e o mar, entre um lavrador e um escritor, entre a serenidade e a loucura.
A grande literatura não poderá ser muito mais do que isto.
_______
Joel Neto, A vida no campo, Lisboa, Marcador/Presença, 2016. Publicado na minha coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental de 01 de Julho, 2016.