Jogo de Ano Novo
Os dados estavam lançados, os números derramavam-se num soluço luminoso. Yan Jin devorava cada um deles com o olhar… Jin, ouro, Yan , uma espécie de Deus…um nome imponente esculpido em benfazejos augúrios de boa sorte que contrastava com a sua pálida figura, magro, quase escanzelado, um barrete castanho que lhe protegia o crânio do frio daquela época. Nascera o Ano Lunar do Galo, espalhando uma atmosfera de alegria e jovialidade pela cidade que parecia contorcer-se e esfumar-se ao ritmo dos panchões.
Veio da China continental numa excursão organizada. Recusara ir com o grupo para um dos grandes casinos modernos. Quer percorrer novamente os corredores onde foi talhada, há doze anos, a desgraça da sua família. Foi ali, naquele Casino que o pai se arruinou, esfumando em poucas horas o pequeno império que construíra com muita astúcia e trabalho.
Fora num dia de chuva que o pai saíra de casa com uns amigos rumo a Macau. Havia anos que a sua vida era desafogada, embora nunca tivessem vivido com demasiados luxos, já que a poupança sempre fora a palavra de ordem. Sempre adorara jogar, mas nunca apostara muito. Era conhecido por um auto-controle fora do comum tanto no jogo, como no álcool, sabendo sempre qual a última gota de aguardente de arroz que lhe era permitido engolir. Mas naquela altura, a mãe de Yan Jin adoecera e o pai parecera perder o seu norte e a sua habitual racionalidade. Diz-se que depois de tudo ter perdido, no Casino, entregou o seu relógio de ouro que também perdeu e saiu para a noite fria e húmida, já atravessada de neons. Terá talvez percorrido algumas ruas, sem rumo. Diz-se que, depois, se aproximou de uma das pontes e voou como um pássaro adiado, mergulhando com um baque nas águas lodosas. Diz-se que o seu corpo desaguou na Taipa, embora haja também quem fale de Coloane…Havia sido apenas mais um de tantos, uma situação tão comum em terras de jogo e de casinos, em que a vida, a sorte e a fortuna dependem de uma combinação de cores, de um fútil e efémero casamento de números. Para ele fora a perda da casa, do que restava da família, dos terrenos, até da magra malga de arroz que lhe passara a alimentar os dias. Tudo lhe fora retirado, usurpado de um momento para o outro. Durante esse tempo ainda emigrara para os Estados Unidos.
Em Nova Iorque refugiara-se num mísero cubículo arrendado em China Town. Trabalhara num restaurante horas infinitas até que como uma marioneta se arrastava dois quarteirões sob a neve de Inverno ou embalado pelas brisas de Verão. Estendia-se na exígua cama – única peça de mobiliário do quarto, descalçava os sapatos e adormecia sem sequer retirar a roupa. Acordava horas de pois com o ruído do despertador e assim passaram semanas, meses, anos.
Entretanto juntara o suficiente para regressar à terra natal naquele Ano Novo, para pagar a hipoteca da casa, mas… queria mais! Queria de volta a fortuna perdida, queria resgatar das muralhas do passado cruel tudo o que o pai perdera. Queria casar-se com Chun Nui e oferecer-lhe um dos cobiçados anéis de noivado que ornamentavam as montras das ourivesarias. Por tudo isso ali estava. Fora a Macau ver nascer o Ano Novo.
A roleta continua a girar, a bola toca os números numa dança frenética e alucinante. A luz derrama-se dos candeeiros do tecto em cascatas de brancura, povoadas pelo vermelho ou azul das máquinas. Sozinho perante a roleta, ele prime obsessivamente a tecla como se não houvesse amanhã, nem hoje, nem ontem, nem mundo, nem vida: apenas ele, uma mesa redonda e o boné castanho que lhe desliza da cabeça. Os outros jogadores, vidrados nos ecrãs constroem e destroem os seus mundos.
Mas ali, naquela hora, só ele existe do alto da sua ambição sem idade, da sua sede de resgatar um novo amanhã. De súbito: 888 (b ba ba), vermelho! Oito, o número da sorte !! A aposta sobe para os 900 000, 000 Hong Kong dólares… Não quer acreditar!! Pode ser só um princípio, pode triplicar essa quantia ou mesmo quadruplicar! Vai carregar novamente na tecla e continuar a apostar, quando a imagem petrificada do pai com o rosto corroído pela água do Rio das Pérolas o faz hesitar… Naqueles segundos tem de decidir: avançar rumo ao sonho da fortuna ou resgatar o dinheiro já ganho e sair do jogo… No preciso instante em que vai avançar, como tomada de vontade própria, completamente desligada do cérebro, a sua mão carrega na outra tecla para parar a aposta e imprime o talão do prémio. Corre para o balcão, recebe o dinheiro e sem sequer olhar para trás, mergulha na noite fria e húmida povoada de néons, enquanto ao longe ecoa um ou outro panchão disperso a afugentar os espíritos maléficos. E sente que o espírito do pai, talvez vogando acima da bruma de luzes multicores o aplaude. Yan Jin pensa que a vida não passa dum jogo, uma roleta onde a fortuna e os mundos de cada um se jogam, diluem, destroem ou renascem a cada momento, sem que nada seja seguro nem garantido. Basta um segundo, o bater das asas de uma borboleta, o pousar de uma ave num céu qualquer e tudo muda. Então, apressa-se para apanhar o autocarro de regresso à nova vida, aos novos desafios e ao Novo Ano.
Dora Nunes Gago