Conta-se que em Bizâncio, quando já os turcos trepavam pelas muralhas da cidade, ainda uns quantos sábios discutiam gravemente acerca do sexo dos anjos… Por isso é que, invariavelmente, classificamos de “bizantina” ou bizantice” toda a discussão que não leve a quaisquer resultados práticos – e em que apenas tempo e engenho se percam.
Recordo, a propósito, que na manhã do dia 25 de Abril de 1974, numa altura em que decorria nas ruas de Lisboa a Revolução que iria mudar para sempre os destinos de Portugal, alguns deputados da Assembleia Nacional entretinham-se a discutir, acaloradamente, sobre um tema deveras singular: “o cultivo da vinha”…
Nos dias de hoje, e em muitas e variadas situações, há quem esteja preocupado com “o cultivo da vinha” em vez de enfrentar os sérios, graves e verdadeiros problemas que nos assolam. Há por aí bizantices até dizer chega, e não só as relacionadas com Trump e Bolsonaro… Temo-las dentro de portas. Por exemplo:
1. A troca de informação precisa por mera coscuvilhice.
2. O parolo regozijo de que o que é português é que é bom…
3. Num país onde falta a planificação e reina o desenrascanço e todos são franco-atiradores é, no mínimo, ridículo dizer-se que somos um bom exemplo para a Europa…
4. A promessa (irrealista) de uma vacina contra o Covid-19 em apenas alguns meses…
5. André Ventura, candidato à presidência da República, referindo-se a Ana Gomes como “a candidata cigana” e a dizer que a deputada Mariana Mortágua escreve “sob o efeito de marijuana”…
6. A ideia de que a equipa de futebol do Benfica, por mérito do treinador Jorge Jesus, estaria a preparar uma equipa para ser campeã da Europa. Viu-se…
7. A presença do primeiro-ministro português na comissão de honra de Filipe Vieira à presidência da equipa acima mencionada, sendo que ele (Vieira) é arguido em vários processos judiciais ainda não transitados em julgado.
8. O imediatismo económico como condição sine qua non para um desenvolvimento cultural, quando, nos países desenvolvidos, se passa precisamente o contrário…
9. Nem tudo é cultura, e esta não pode ser confundida com animação. Ouvir uma sonata de Beethoven não é o mesmo que ouvir uma cantiga do Quim Barreiros. Quando, falando em cultura, colocamos na mesma palavra a poesia de Fernando Pessoa e a receita de arroz-doce da Beira-Baixa, algo está profundamente errado…
10. São mais que as mães os estrepitosos comentadores desportivos nos vários canais televisivos. Falam, falam, falam… Quando teremos, pelo menos 10% do tempo reservado ao desporto, empregue na divulgação cultural?
11. Depois quando se coloca à frente dos destinos culturais os papalvos mais ignorantes deste país… Espantoso: quem manda na cultura em Portugal não é gente da cultura. É certo que são pessoas que dizem gostar da cultura. Está bem. Que gostem. Mas também eu gosto de futebol e não sou treinador do Benfica… E garanto que sei tanto ou mais de futebol do que eles sabem de cultura. Conheço as regras do jogo, os resultados e as classificações dos últimos anos, os nomes dos jogadores e dos treinadores, os melhores marcadores, as transferências, as técnicas, as tácticas, tudo – e ninguém me convida para treinar seja que equipa for. Mas, em Portugal, quem está à frente do sector da cultura é gente que sabe de tudo sobre a cultura mas com um pequeníssimo pormenor: tudo menos cultura… Depois, claro, os profissionais da cultura dão-se mal com eles. É natural. São amadores a tratar com profissionais. São os penetras da cultura…