Florianópolis como nunca, a cidade como sempre
Depois do carnaval, nos recuperamos nas cinzas e iniciamos 2020 de verdade, como já é costume entre os brasileiros. As sete ondinhas puladas no réveillon garantiam um ano iniciado com o pé direito. O verão em Florianópolis seguia quente e movimentado, como sempre. Como sempre o sentimento de “agora vai!”. Ano de eleições municipais, obras sendo entregues com a devida festa, tudo normal.
Até que o novo coronavírus foi ganhando territórios. A globalização uniu o mundo todo, mas só o mundo que é um globo. O mundo plano ainda não havia decidido se a pandemia era uma praga ou invenção da mídia, e debate não faltou para que ficasse declarado qual era o comportamento adequado à situação, qual alimento é o mais eficaz para garantir uma boa imunidade ou quantos segundos são suficientes para lavar as mãos.
Na Ilha de Santa Catarina, além de cheiro de peixe e maresia, começou a ser comum sentir a presença do álcool gel e da água sanitária. De saída, Florianópolis mudou muito. Toda a proximidade dos bairros familiares teve que manter dois metros de distância. Toda senhora corriqueira teve que ficar mofando com a pomba na balaia. O helicóptero na praia, em voo baixo, não procurava por afogamentos, mas levantava areia para espantar as pessoas e mandá-las para casa.
A procissão do Senhor dos Passos não aconteceu. Nos jornais sobreviventes, o aniversário da cidade foi notinha e não capa. A roda-gigante na Beira-mar Norte parou. A ponte reformada, recém-inaugurada, deixou de ser cenário dos stories no Instagram. Na vida privada, a videoconferência passou a servir para terapia, reuniões, entrevista de emprego, defesa de tese, aula de crochê.
Foi um pouco duro ficar enclausurada em um ambiente com o lado de fora tão bonito. A Ilha da Magia continuava belíssima, mas quem é que teve cabeça para aproveitar alguma coisa em cenário tão caótico? A população passou a ter que viver uma nova rotina, não escolhida, envolta de perguntas, medos, tarefas. Os cidadãos equilibravam reorganização e trabalho, porque apesar de adiados, os prazos correm, a vida passa, a conta chega e o salário tem que dar para tudo.
Universidades, comércio, escritórios e empresas se viram obrigados a reinventar seus modos de funcionar e seus espaços. A “Ilha do Silício” adotou o home office. E, por mais que haja quem confunda isso com férias, trabalhar de pijama agora é uma realidade.
Depois de alguns dias silenciosos, começou a ser comum sair de casa para os afazeres necessários com todo o cuidado e, no meio do caminho, encontrar ônibus de turismo e excursões. As escolas estavam fechadas, mas hotéis e pousadas abriram. Sofrer e ver gente passeando foi confuso, do mesmo modo que o “abre isso, fecha aquilo” dos decretos foi deixando tudo meio relativizado. Talvez nem fosse para tanto, talvez não fosse bem assim.
Eis que o vento sul virou tudo do avesso. Se, em um mês, éramos exemplo nacional, pelo cumprimento do isolamento e pelo período sem registro de mortes, em outro, atingimos o “altíssimo risco” de contágio. A cada alerta recebido da Secretaria de Saúde, um pouco de desespero. Cada vez era como se o vírus fosse adentrar nas residências pelo celular.
Nessa quarentena sem fim, em um dia, a impressão é de monotonia e de que nada ocorre, e, em outro, parece acontecer o contrário: tudo muda do dia para noite, de uma semana para outra. Em um mês, atraímos os olhares e noutro, os repelimos. Por enquanto, não nos olham nem de face shield.
De março para abril, o uso de máscaras deixou de ser coisa dos mais preocupados e passou a ser objeto de lei. Ainda havia dúvida se o alarde era exagerado, mas, mesmo com poucos casos na cidade, a população se mobilizou. Aderimos, em geral, ao #ficaemcasa. Obedecíamos e publicávamos nas redes sociais.
Em maio e junho, a cidade fez a primeira tentativa de “reabrir”. O sistema de saúde parecia estar dando conta, e aparelhos hospitalares superfaturados estavam sendo providenciados. Não bastasse tudo isso, veio um ciclone, para trazer ainda mais choro e ranger de dentes – além de dias sem energia, o verdadeiro apocalipse da atualidade.
Em julho, as pessoas com algum dinheiro e pouca noção correram para a Serra, para fazer de conta que a temporada de inverno não foi afetada. Piqueniques, degustações, petits comités, churrasquinho… Agir naturalmente deve ter virado estratégia para a manutenção da sanidade mental (é melhor pensar assim!).
Agosto pareceu um estado de negação fora de época. Pessoas tentam criar um modo de viver novo, outras tentam retomar o mesmo modo de antes, no mundo que não mais o suporta. No fim de semana, o chopinho com ostra no Sambaqui continua, só que agora com máscaras (mas no queixo, na mão, no bolso, para colocar apenas quando a Guarda passar). A civilidade e a solidariedade sempre só resistem até a conveniência.
Parte da população está em quarentena há praticamente metade de um ano e seguimos contando. É muito difícil vislumbrar o momento esperado do “quando isso tudo passar”, porque há novidades a todo momento, mas também paira uma certa pasmaceira. A vida em pandemia é acelerada e freada. Vamos nos limites dos opostos. Por um lado, é bom respirar. Por outro, o ar já entra atravessado, como que já sendo manifestado um sintoma, de Covid ou de paranoia.
Nesses tempos, a disseminação não foi apenas de coronavírus, mas também de doenças desencadeadas pela situação: gastrites, transtornos psicológicos, depressão, distúrbios alimentares. Para balancear, se espalharam correntes de meditação. Expressões de afeto e solidariedade co-ocorreram com aumento nos casos de feminicídio e violência doméstica. Ao mesmo tempo, crescente no número de divórcios e no de matches no Tinder.
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2 Linguista e professora de Língua Portuguesa. csvaleria91@gmail.com