Sou do tempo em que a educação era adquirida em casa e a instrução na escola. Mas foi na rua que aprendi a defender-me, a perder o medo, a ter ação e a saber tomar decisões.
Orgulho-me de ter vivido, na minha Graciosa ilha, uma infância solta e à solta entre o azul do mar e o verde da natureza, rodeado de animais, pássaros, árvores de fruto, relvas, roupa suja, mãos cheias de terra, correrias, berros, brigas com os amigos, fisgadas aos melros pretos, brincadeiras com gafanhotos e grilos, topadas nos calhaus, joelhos esfolados, sapatos esfarrapados de jogar à bola… As famílias eram numerosas, os pais trabalhavam e as mães eram domésticas a tempo inteiro. Nós, os filhos, éramos rijos, tínhamos vigor físico, peles frescas e boas cores, respirávamos bons ares, obedecíamos aos mais velhos e, nas brincadeiras, éramos confidentes, solidários, gentis.
Nesse tempo era a rua que nos dava a ginástica – não os ginásios… Jogávamos à bola onde calhava, e não era difícil encontrar um espaço livre para o fazer. Um pedaço de caminho pouco utilizado servia às mil maravilhas: duas pedras de cada lado faziam de balizas, e as restantes marcações do campo eram mentalmente calculadas. Jogávamos sem árbitro e sem regulamentos nacionais ou internacionais. As faltas e os castigos eram decididos por consenso, nem sempre rápido. Mas o jogo reatava-se democraticamente, por obediência à maioria e com uns sopapos à mistura…
Aprendi as regras da vida a jogar futebol na rua.
Dito isto, e sem querer generalizar, faz-me pena ver como hoje, nas cidades, muitas crianças vivem encarceradas em apartamentos, sem horizontes, sem árvores, encolhidas na preguiça dos seus quartos de cama, ociosas, sonolentas, indiferentes, arregimentadas, passivas, olhando a rua à distância das suas janelas e varandas… O tédio enfraquece-as. E como fazem pouco exercício e abusam de junk food, é notória a tendência que têm para engordar… Depois é necessário que tudo ao seu redor seja muito fácil, muito claro e muito pronto; se assim não for, hesitam, estacam, sucumbem.
Por isso, tornam-se crianças indecisas e irresolutas, sem iniciativa, sem determinação, sem vontade e sem interesse, e estão sempre dependentes dos pais de quem receberam uma educação mimada e amolecida… Só lhes interessam os videojogos, os smartphones e, nos intervalos, vão arranjando tempo para fazer os trabalhos de casa e estudar o q.b.… Quando se portam mal, negam o que fazem. Aprendem desde muito cedo a mentir, como mecanismo de defesa. São miúdas e miúdos irritadiços e birrentos, superprotegidos por mães e pais inseguros, que estão em início ou em fase de consolidação de carreiras, com vidas muito atarefadas, o que lhes retira tempo para um maior e melhor acompanhamento junto dos seus progenitores. Sentindo a pressão do quotidiano, e temendo não estarem a cumprir integralmente o seu papel de educadores, agarram-se ao único(a) filho(a) que têm e infantilizam-no(a) para lá do natural.
Não trazendo de casa mecanismos de autonomia, identidade e individualidade, essas crianças chegam às escolas cada vez mais “abebezadas” e imaturas. Quando me chegam às mãos, chamo-lhes, carinhosamente, “os meus alunos cutchi-cutchi “… Falta-lhes a vivência da rua.