Mantive uma longa relação de amizade e de camaradagem literária com o escritor e investigador terceirense Augusto Gomes (1921-2003), e não me esqueço da sua pronúncia de alfenim nem do lumezinho de malícia galhofeira que lhe faiscava os olhos piscos…
Fomos camaradas na Força Aérea, ele sargento-mor a um ano de “passar à peluda”, e eu um jovem alferes de 24 anos a cumprir, na Base das Lajes, serviço militar obrigatório. Primeiro ali e, durante largos anos em Encontros de Escritores e em outros fóruns de debate, sempre me deliciei com a pilhéria das histórias do “sr. Augusto Gomes” (assim o tratávamos) e com o seu jeito brejeiro de as contar. O seu livro Filósofos da Rua (1984, 1985, 1993, 1999 e 2017), repositório de figuras populares, quadros pitorescos e retalhos da história angrense, exerceu em mim um enorme fascínio pela maneira como o autor dava a conhecer gentes, costumes, tradições e sonhos.
Senhor de várias artes e múltiplos talentos (não conheço nenhum outro autor açoriano que, como ele, se tenha dedicado, em doses iguais, ao conto, à culinária e à etnografia), cordial e conversador, bon vivant e terceirense até à medula, Augusto Gomes foi, acima de tudo, um homem sábio e genuíno. Iniciou-se na escrita através do suplementarismo cultural (do extinto jornal “A União”). Manteve no Rádio Clube de Angra, no programa “Panorama”, uma rubrica intitulada “À Laia de Conversa” e, por várias vezes, vestiu a pele de jornalista. Mas foi no conto que se destacou, obtendo, nessa categoria, vários prémios literários nas cidades da Horta, Angra do Heroísmo e Luanda.
Observador arguto e dotado de um elevado sentido de humor, ele apreciava os ditos jocosos e as situações anedóticas e hilariantes, e por isso escreveu, ensaiou e interpretou as revistas teatrais “Alagado Pingando”, “Faz-me Cócegas”, “Em Mangas de Camisa” e “Talvez te Enganes”. Escreveu e ensaiou a opereta regional “Amor Campestre” e deu nas vistas, como ator, na opereta “Glória ao Divino”, de João Ilhéu, e no auto “Ao Mar…”, do padre Coelho de Sousa. Exerceu, como ensaiador (palavra hoje substituída por encenador), decisivas dinâmicas de artes de palco em Angra – Liceu, Escola Comercial e Seminário Diocesano – e ainda em várias sociedades recreativas da ilha Terceira.
Para além da obra acima referida, publicou Perdoe pelo Amor de Deus (1981, 2020), que reúne 20 contos de sabor regionalista, em contexto rústico e telúrico, e numa escrita bem-disposta e otimista que transmite uma conceção idealista da vida. O pendor deste autor para a investigação está bem patente nos seguintes títulos: Geminação das Câmaras de Angra do Heroísmo e Évora (1989, 2018), Teatro Angrense, Elementos para a sua História (1993), A Alma da Nossa Gente (1993, 2018, repositório de usos e costumes da ilha Terceira), Danças de Entrudo dos Açores (1999) e Apontamentos para a História da freguesia de Santa Luzia de Angra (2003, 2018). As suas monografias gastronómicas ter-lhe-iam dado fama e fortuna se, por exemplo, tivesse nascido norte-americano: Cozinha Tradicional da Ilha Terceira (1979, 1982, 1986, 1996, 2002, um verdadeiro best seller), Cozinha Tradicional da Ilha de São Miguel (1988, 1997), Cozinha Tradicional da Ilha de Santa Maria (1998), O Peixe na Cozinha Açoriana (2001) e Cozinha Tradicional Açoriana (2019, compilação das quatro Cozinhas do autor).
Cada escritor tem a musa que merece. A de Augusto Gomes sempre foi a tia Gertrudes, que ensina a fazer pão, açorda, caldinhos de couve, alcatra, peixe e bolinhos doces… Quero com isto dizer que estes livros não são meros repositórios de receitas gastronómicas. Vão mais longe, pois traduzem um modo de ser e viver em comunidade. Ou seja, o autor fala dos hábitos gastronómicos dos nossos antepassados e de toda uma herança cultural que será bom não perder de vista nem de paladar… Por outro lado, são-nos narradas um conjunto de “historietas” (expressão do autor) que, servindo como ponto de partida para contextualizar os pratos, acabam por fazer um muito oportuno enquadramento histórico, sócio-económico e cultural de outros tempos marcados por dificuldades e adversidades várias e variadas.
Por conseguinte é grande o legado que Augusto Gomes nos deixou. (Falta só descobrir por onde andam os manuscritos que, antes de falecer, ele tinha para publicação em livros: “Cozinha Tradicional da Ilha Graciosa” e “Memórias de um Zé das Lérias”).
E é aqui que entra neste filme a Turiscon Editora que, através do seu dinâmico editor Liduíno Borba, tem vindo a reeditar, desde 2017 e com muito mérito e oportunidade, a obra toda de Augusto Gomes, “o único autor açoriano que nos últimos tempos maior quantidade de livros vendeu, editados nos Açores”, segundo aquele editor.
Assinalando-se, no corrente ano, o centenário do nascimento de Augusto Gomes, seguir-se-ão outras reedições de obras deste patrício nosso, que foi um homem de muitos saberes e sabores. E um autor inspirado na alma de um povo.