O mais novo longa-metragem de Zeca Nunes Pires, é construído em torno de uma jornada de transformação. O ponto de partida é a viagem de Malu (Larissa Bracher) desde a Ilha do Pico no arquipélago dos Açores até o Sul do Brasil com a finalidade de realizar uma investigação científica sobre Etnobotânica que utiliza e valoriza o conhecimento tradicional dos povos possibilitando entender suas culturas, bem como a utilização prática na cura de doenças. Sua pesquisa de campo se desenvolve na comunidade tradicional da Costa da Lagoa situada no interior da Ilha de Santa Catarina e que por muitas décadas manteve-se isolada do resto da Ilha. Tão distante de tudo que bem poderia ser chamada de “terra dos esquecidos,” como nos Açores denominavam o Sul do Brasil para onde partiram tantos casais açorianos no século XVIII.
Desde as primeiras cenas em que a história-enredo se apresenta estabelece-se uma ponte entre as duas margens – o cá e o lá – como força de referência da história cultural comum. Imagens impressionantes da explosão do vulcão dos Capelinhos na Ilha do Faial e a beleza majestosa do Pico, a ilha negra e misteriosa no seu reinado absoluto. Imagens de freguesias bucólicas – Vila das Lajes,ponto de partida e, – Costa da Lagoa, ponto de chegada, lugar mítico, depositário tanto da historicidade insular quanto do imaginário ilhéu com seus mistérios, encantos, bruxas, feiticeiras, boitatás, fogo-fátuo, mula-sem-cabeça, lobisomens, benzedeiras e suas rezas. O que nos remete ao fabulário açoriano, componente do patrimônio simbólico, universo povoado por mitos e lendas, engenharias imaginárias, transmitidos ao longo tempo, reproduzidos e perpetuados pela oralidade tradicional.
Mas, nem por isso, o filme descamba em exageros folclóricos até porque não é folclore. É um filme assentado nos elementos míticos da cultura popular, componente do patrimônio cultural imaterial da Ilha de Santa Catarina.
A presença da obra de Franklin Cascaes serve como o fio condutor que tece a trama de suspenses e mistérios, envolve a Antropóloga em suas descobertas empíricas e no desvendamento do desconhecido, do que não se explica e que desafia o limite do entendimento sobre a razão e a imaginação. Como na cena do barco do pescador Pedro que voa no céu da meia noite iluminado pela enorme Lua Cheia e que nos faz alçar voos nas asas da imaginação com picárdia lembrando a lenda do pescador Tibúrcio que viveu na Costa da Lagoa e teve sua baleeira roubada pelas bruxas, numa referência explícita ao fantástico de Cascaes. Sabemos que Cascaes escreveu, desenhou, montou em argilas cenas e esculturas de tudo quando viu e ouviu em suas andanças pela Ilha. Por isso saímos do cinema com sensação de déjà vu.
Da mesma forma, não causa espanto a forte presença da figura da “benzedeira” Dona Ritinha, personificada com muita naturalidade por Sandra Ouriques. Dona do conhecimento ancestral da cura pela reza,ervas,chás e “brebes” ela representa o ponto de encontro entre os saberes e fazeres tradicionais e o saber científico que norteia o projeto de investigação da antropóloga Malú. Pois,é na partilha desses saberes e na descoberta dessa cultura mítica que se encontra o ápice da jornada de transformação, a tônica central do filme que foi urdido pelas roteiristas Tânia Lamarca e Sandra Nebelung com base no argumento de Tabajara Ruas.
A menina Carolina, curada de seus males, sapateia no trapiche. Olha um barco que parte dançando ao sabor das ondas da lagoa da Conceição bolinadas pelo vento sul. No barco vai Malú com emoções à deriva, entre lágrimas, transformada. É uma partida? Não,um regresso,uma esperança. Tudo se fecha, suavemente, como uma mandala, o círculo mágico, a energia em movimento. Um belo final para A Antropóloga! Gostei muito.
Por último,cabe lembrar o esforço coletivo de todos para a realização do projeto A Antropóloga, os apoios institucionais e patrocinadores que o tornaram possível em Santa Catarina, na margem de cá do Atlântico; na margem de lá, nos Açores, muitas foram as mãos estendidas, desde a cessão de imagens por Lurdes Bettencourt Oliveira até a cooperação cultural institucional do Governo Regional dos Açores, Direção Regional das Comunidades e da RTP Açores/ Radio e Televisão de Portugal.
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