O mais novo longa-metragem de Zeca Pires, A Antropóloga, que estreia no final do mês nos cinemas da Grande Florianópolis, é construído em torno de uma jornada de transformação. O ponto de partida é a viagem de Malu (Larissa Bracher) ao Brasil. Em busca do conhecimento relativo ao uso de plantas medicinais em comunidades tradicionais, a antropóloga desenvolve uma pesquisa de campo na Costa da Lagoa, localidade situada nos recônditos da Ilha de Santa Catarina.
O cenário da investigação logo se torna protagonista à medida que Malu se depara com narrativas provindas do imaginário popular. Com isso, a pesquisa científica, teoricamente imparcial, transforma-se em matéria afetiva. O envolvimento da estudante provinda dos Açores com personagens singulares interfere de maneira decisiva em sua trajetória. O ponto de virada encontra-se no momento em que percebe que o mais importante não é o objeto de sua investigação, mas sim a experiência junto àqueles que se dispõem a narrar seus saberes e fazeres.
O filme lança mão de um jogo entre o documentário e a ficção, num lance realizado com extrema sutileza. É isso que explica o efeito delicioso que proporcionam os excertos documentais. Em determinados momentos, sob o pretexto da personagem pesquisadora, a atriz Larissa Bracher se torna uma verdadeira repórter que vai a campo perguntar aos velhinhos da região sobre os usos e as práticas das plantas medicinais.
A escolha de se fazer intercalar estes depoimentos ao longo do filme foi extremamente bem-sucedida. São nestas sequências salpicadas ao longo da narrativa que surgem relatos preciosos. Mais do que informar sobre os costumes locais, acabam por mostrar a dimensão humana de todo o processo envolvido na produção deste longa-metragem cuja equipe, literalmente, morou na Costa da Lagoa por mais de um mês para a realização do filme.
(foto Cláudio Silva)
São as relações humanas quem determinam um encontro decisivo: Malu conhece a adorável menina Carolina (Rafaela Campos de Barcelos), que se torna a protagonista do núcleo trágico do filme: seu pai (Luigi Cutolo) busca salvá-la de um mal sem cura. Ao conviver com esta família em decomposição (a mãe da criança já havia falecido no parto), Malu descobre que a doença da pequena Carolina possui um diagnóstico ambíguo. De um lado, o discurso científico – representado pela figura do pai, que é médico – assinala um câncer no cérebro. De outro, a crença da benzedeira local (Sandra Ouriques), a defender que Carolina sofre daquilo que é chamado “empresamento bruxólico”.
Uma ressalva: a partir deste momento, o filme bem poderia ter assumido ares burlescos ou então melodramáticos. Afinal, a velha e boa história das bruxas é um clichê da cultura florianopolitana tendo como origem, dentre outras coisas, a apropriação do universo do artista Franklin Cascaes (1908-1983), cuja obra tem presença estratégica na narrativa de Zeca Pires. Na esteira deste processo de construção identitária encontra-se a hipervalorização da cultura açoriana em detrimento às diversas matrizes étnicas envolvidas no povoamento da Ilha de Santa Catarina (africanas, indígenas, etc.).
Em A Antropóloga, a referência açoriana não é estandarte de nada, mas sim ponto de partida para um roteiro que estabelece o embate entre o arcaico e o moderno, num jogo entre a prosa (o esforço em se contar histórias de vida) e a poesia (o plano final, da menina à beira-mar, é o que há de mais sutil e poético no filme).
Zeca Pires soube fazer uso da tradição e também de um repertório narrativo e plástico da Ilha de Santa Catarina sem cair no óbvio. O enredo encontra analogias nas jornadas de homens do mundo como Pierre Verger, Frans Krajcberg ou Roger Bastide (este último, por sinal, é explicitamente citado pela personagem de Malu em um registro num bloco de anotações). Tanto o fotógrafo e etnólogo francês, o artista polonês quanto o sociólogo francês, respectivamente, têm em comum o fato de chegarem ao Brasil já adultos, com objetivos diversos, e passarem a residir no país em virtude de uma experiência fundamental junto à paisagem, costumes e crenças populares.
No filme de Zeca Pires há um conjunto de elementos locais (os costumes, as rezas, o ambiente da Costa da Lagoa) que ao entrarem em contato com o outro, com o estrangeiro, ganham novos contornos. Um trabalho que dispõe de diversos gêneros: colheradas de suspense, pitadas de documentário, toques de comédia, porções de tragédia. Em um filme, diversos filmes. O recorte proposto é um mosaico de referências que constrói um universo cuja leveza e humor são um prato cheio para uma boa sessão de cinema.
Fonte: Jornal Diário Catarinense,16 de abril de 2011 | N° 914