Já sabemos que um conto tem de surpreender o seu leitor de imediato, e o seu fim ser caracterizado por uma radical viragem na narrativa. Tudo o que esperávamos não acontece, e o que nos parece ou nos disseram ser a “realidade” distorce-se numa subversão textual que, assim mesmo, não pode perder a plausibilidade. Dir-se-ia que isto é verdade sobre qualquer peça de ficção, mas o conto por regra constitui uma fatia-de-vida que só vale a pena ser relatada como que numa parábola, não necessariamente para ensinamento seja de quem for, mas para nos colocar do outro lado do espelho de onde vemos e nos vemos ora em mundos que não pensávamos comuns, ou sequer reconhecíveis por outros, ora aonde, afinal, vivemos a felicidade do inatingível ou o pesadelo de todos os nossos medos, ou ainda a estranheza do que nos é meramente diferente mas sem ameaças ou prazeres de qualquer espécie. Por outras palavras, o conto deverá retratar e devolver a nossa própria humanidade guiada, sempre, pela complexidade da consciência humana, que nos leva e traz imparavelmente em viagens imaginárias de dentro para fora e de fora para dentro. Somos nós que reinventamos a realidade, e é, simultaneamente, essa mesma realidade que nos forma e deforma. Para dar aqui só um exemplo extremo de uma outra literatura, diremos que do fantástico aterrorizador de um mestre como Edgar Allan Poe ao hiper-realismo dito “sujo” de um Raymond Carver cabem todas as nossas fantasias e medos, todos os nossos prazeres e desgostos da mais afastada modernidade até aos nossos dias quase inomináveis a partir de ideologias reinantes, mundividências ou representações artísticas nas letras e nas outras artes. Queria apenas colocar esta obra de Teolinda Gersão num outro contexto, que não o habitual realismo, por mais brilhante que seja, da nossa própria tradição. A autora de Prantos, amores e outros desvarios não só parte quase sempre do quotidiano, como creio alguém já ter observado, para o reinventar na sua arte, como nesse processo cria os mais inesperados universos paralelos, desconstruindo não só esses seus dias presumivelmente vividos e lembrados, como desconstrói implacavelmente outros mundos contidos em literaturas que a influenciaram, ou pelo menos de um modo ou outro entraram nos seus múltiplos imaginários literários. “Alice in Thunderland”, o último conto deste livro, é uma revisitação nada inocente e de todo surpreendente ao famoso romance Alice in Wonderland/Alice no País das Maravilhas, publicado em 1885 sob o pseudónimo de Lewis Carrol, e que contém em si toda a temática que tende ser recorrente em muita da sua obra – a génese da própria literatura, e depois a realidade que a provocou ou inspirou nos seus diversos contextos, e vice-versa. Todos estes contos são, para citar aqui o título de uma outra autora que me é muito querida, um “sorriso por dentro da noite”. Aliás, desde a primeira à última linha desta escrita, é o humor que mais sobressai em cada personagem ou situação defrontada, nunca retirando a seriedade da sua temática, desde o amor e desamor à injustiça das e nas nossas vidas, como em “O meu semelhante” e “Décimo mandamento”, até à natureza da mentira como verdade, que é naturalmente a essência de toda a grande literatura, a vida escondida no sonho, ou o pesadelo do dia-a-dia disfarçado no sentido de missão e obrigação perante os outros, como em “Vizinhas”.
A escrita de Teolinda Gersão traz luz à nossa escuridão, mesmo que a loucura espreite a cada momento. O primeiro conto desta colectânea, “Pranto e riso da noiva assassina” é uma magnífica tirada a uma condição universal que é o amor entre dois seres humanos, seguida pela humilhação da rejeição, a raiva íntima sentida num momento de uma vida tornada para sempre numa comédia posterior, o que mais nos move e comove enterrado inevitavelmente na sucessão de relacionamentos abertos ou escondidos, ou na aceitação da solidão e saudade. A morte de que aqui se fala “acontece” com um realismo quase assustador, mas apenas num estado onírico. Cabe à literatura dar sentido e reorganizar as verdades e falsidades das nossas vidas, desfazer o mistério das coisas perante coincidências sem qualquer sentido ou origem deliberada – os “desvarios” que todos vivemos uma vez ou outra, com ou sem consequências maiores. Por mais individualistas, ou mesmo narcisistas que sejam estes personagens masculinos ou femininos (a autora dá voz a narradoras e a narradores), a grande sociedade que os rodeia está sempre presente, sem nunca se pronunciar certas palavras-chavões que julgam ou sentenciam a nossa condição colectiva, está reflectida irremediavelmente nos valores que cada um segue, profere ou justifica o que faz ou deixa de fazer. Mesmo na clausura de um prédio citadino, aqueles que o “homem subterrâneo” de Dostoievski rejeitava como sendo parte de um outro inferno da modernidade, residem as múltiplas metáforas da condição humana que nos é dado viver e testemunhar, palavras e acções uma clara reprodução e fingimento do que vai e predomina no lado de fora da porta. Desde uma empregada de limpeza a um banqueiro demasiado reconhecível na nossa actualidade, estão lado a lado a consciência magoada de quem virou as costas ao sofrimento momentâneo de outro com a crueldade da hipocrisia beatificada da chamada sociedade aberta e compassiva. Pode a autora extrair a mais bela poesia do buraco negro que também envolve e afoga a nossa existência, mas nunca o esconde. Poderá ser que só a ficção fala a verdade, como ainda há dias nos relembrava a escritora Anna Solomon em “Writer, Writer Pants on Fire”, num mini-ensaio de The New York Times: “As mentiras da ficção – escrevia ela – são mais verdadeiras do que a própria verdade”. Não vejo melhor descrição – ‘Escritora, Escritora, Calças a Arder’ – desta e de outras obras de Teolinda Gersão. A quase indescritível confusão e insegurança das nossas vidas nos tempos presentes e escuros, parafraseando uma outra grande autora do século passado, tem levado a um certo fascínio de escritores, portugueses e estrangeiros, pelas artes e estudos clássicos de outros séculos, como que numa tentativa de melhor se perceber as origens da tragédia moderna. Ler estes contos da nossa urbanidade é como olharmos solitariamente pela janela, vendo o que vai na rua – poderemos estar sós, mas fazemos parte de um todo, somos apenas mais uma peça do mosaico, indesligável, por mais que queiram certos existencialistas, da sorte de todos os outros.
“Viu-se no brilhante papel de benemérito – eis aqui o pensamento do banqueiro em ‘Décimo Mandamento’, e que a caminho da igreja que frequenta assiduamente topa um mendigo cheio de fome, provocando-lhe pensamentos que não só se assemelham a muito do que ainda se pensa e diz por palavras variadas e bem mais estudadas, como engloba boa parte da história europeia recente – a assinar um compromisso de serviços gratuitos aos mendigos: distribuição ilimitada de pão, vinho e carne, tratamento nas clínicas geridas pelo Banco, garantia de todos os encargos com a sua cremação ou enterro… A abundância de comida pouco variada mantê-los-ia fartos e gordos, mas não saudáveis, por um tempo relativamente curto. E, vivos ou mortos, os seus corpos tornavam-se um manancial de lucro, desde recolha de sangue e venda de órgãos, campo livre para testar novas substâncias, para já não falar do que, como a gordura, poderia ser aproveitado no campo da cosmética. Bastava saber como fazer as coisas, mas nisso ele era perito e tinha uma enorme rede a colaborar com ele”.
Aqui como noutros contos, Prantos, amores e outros desvarios é um diálogo com alguma da mais duradoura literatura satírica e modernista a partir de Jonathan Swift, como se vê na citação anterior, a talvez Aldous Huxley e George Orwell, consciente ou mesmo que apenas sub-conscientemente. O último conto, já referido, “Alice in Thunderland”, significativamente o mais longo desta colectânea, é uma peça antológica, na sua forma e no seu tema, na sua perfeição contextual com que escava a possível génese não só de Alice no País das Maravilhas, mas da literatura em geral e pelos motivos mais diversos, quer pessoais, religiosos, ideológicos ou meramente artísticos. A ficção toda inocente do livro que se tornou um clássico no mundo inteiro, imortalizado ainda mais pelos estúdios da Disney, poderá ter a sua génese no que hoje é considerado o mais sujo desejo, a pedofilia, o professor de nome Charles Lutwidge Dodgson escondendo numa história sem sentido ou nexo a voracidade com que fotografava e se passeava com raparigas e rapazes. O choque literário deste texto não deveria surpreender ninguém para além de ser uma astuta narrativa, só a capacidade interpretativa da sua narradora. Fez-me lembrar de imediato outra criação desde há muito icónica e lendária na cultura universal do século passado, e igualmente até aos nossos dias – a origem da balada “Over the Rainbow”. Foi escrita pelo judeu-americano nova-iorquino, e comunista pró-soviético Edgar Ypsel Harburg – que acabaria na lista negra de Hollywood durante a perseguição anti-esquerda dos anos 50 – para o filme Wizard of Oz, em 1939, mas a sua mensagem era bem outra, que não a canção de embalar meninos e meninas, mas sim o equivalente ideológico, digamos, dos nossos “amanhãs que cantam”, tendo o letrista escondido nas suas palavras a implícita crítica ideológica e política àquele momento histórico do seu país e do mundo, os perpétuos desvarios do nosso destino.
Prantos, amores e outros desvarios dá continuidade a uma extensa obra literária da nossa autora. “O que a Teolinda faz é escrever a vida”, afirmou noutra parte e vem reproduzido na contracapa deste livro a professora e ensaísta Maria Alzira Seixo. São os nossos irremediáveis estados de alma – com princípio, meio e fim, mesmo que das realidades textuais não o reconheçamos. Somos nós do outro lado do espelho a espreitar a nossa própria humanidade. Aliás, os três substantivos do título destes contos significam talvez na totalidade toda a condição humana, no imaginário destes personagens e na realidade das nossas próprias vidas.
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Teolinda Gersão, Prantos, amores e outros desvarios, Lisboa, Porto Editora, 2016. A informação sobre o autor de “Over the Rainbow” foi tirado de American Dreamers: How The Left Changed A Nation, de Michael Kazin.
Nota: Publicado na coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 2 de Dezembro, 2016.
Reproduzido no Blog Comunidades com a devida autorização do Autor, escritor Vamberto Freitas