A boca de Lula sobre Portugal
Recentemente circulou nos média a acusação do ex-presidente Lula da Silva aos portugueses, culpando-nos do atraso brasileiro em matéria de educação. Agarrou num ponto frágil, muito frágil mesmo, do nosso passado colonial, impossível, por mais que nos custe, de ser escamoteado. Lembrou que os espanhóis criaram universidades desde cedo (em 1538 em Santo Domingo, e não 1507, como terá ele afirmado segundo algumas notícias), 1551 no Peru e 1624 na Bolívia). A comparação seria ainda mais cruel se Lula a tivesse alargado à Inglaterra e suas colónias nos EUA: nove universidades antes da independência, entre 1621 e 1776: Harvard, Yale, Princeton, Columbia, Pennsylvania, Brown, Dartmouth, William and Mary e Rutgers. Depois da independência o número cresceu exponencialmente até atingir uma verdadeira explosão no século XIX. Actualmente, são mais de 2500 e o número ultrapassa os quatro mil se incluirmos os 1600 two-year colleges. No ano de 1910, as universidades americanas concediam já 440 doutoramentos. Actualmente a media anual ultrapassa os cinquenta mil.
Independentemente dos factos acima, recorde-se, porém, como é antiga essa pecha de culpar os portugueses pelos males que afligem o Brasil. Não que não haja boas doses de razões, concedamos. E alguns pensadores da cultura daquele país têm-nas identificado com saber e serenidade, apontando o dedo para nós, como fez Sérgio Buarque de
Hollanda no seu clássico Raízes do Brasil, infelizmente muito pouco conhecido em Portugal. Manuel Bomfim foi menos cordato, mas merece igual atenção. Idem para Paulo Prado e Caio Prado Júnior. Aliás, a lista deveria incluir mesmo Gilberto Freyre, autor mais vilipendiado do que lido. (Do Sul do Brasil, uma leitora deste texto reclamou excepção para a atituda positiva que ali se cultiva pela ascendência açoriana.)
Faz anos, um Embaixador do Brasil em Washington, numa conferência na Brown University, teve o pouco diplomático senso de acusar exclusivamente Portugal como responsável do atraso do Brasil. Mesmo ali diante de vários portugueses – convidado pelo Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, na altura dirigido por um português, o assinante desta crónica – e num ambiente departamental que faz questão de desenvolver um espírito de cordialidade lusófona, o que não impede que se chamem os bois pelos nomes. Só que a ocasião era diferente e o discurso do Senhor Embaixador tinha carácter político; não se tratava de uma intervenção num seminário. Segundo ele, foram 400 anos de má influência portuguesa no seu país.
Não me contive. Não sendo eu diplomata, não me custava nada entrar em diálogo no mesmo comprimento de onda com quem, diplomata de obrigação, o não fora. Lembrei-lhe que não tinham sido 400 anos de presença portuguesa, mas pouco mais que 300. Depois,
há quase 200 anos que o Brasil é maior e vacinado, adulto e liberto. E, muito embora reconhecendo o peso do passado, não me parecia que o Senhor Embaixador devesse desconsiderar o seu próprio país atribuindo-lhe o estatuto de eterna criança ainda hoje sob a tutela dos seus bisavós (aliás, de parentesco mais remoto ainda). Várias gerações de cidadãos brasileiros tiveram tempo bastante para debelar alguns dos males herdados, buscando soluções correctoras e desenvolvendo novas marcas culturais que mais depressa conduzissem o Brasil à modernidade. Os Estados Unidos tornaram-se independentes apenas 50 anos mais cedo e desde o início as elites americanas impuseram a uma sociedade, que quiseram nova, algumas directrizes profundamente distintas das que lhes haviam legado os ingleses. Thomas Jefferson e os demais Founding Fathers foram corajosos inovadores que lançaram estruturas de fundo inteiramente modernas. Benjamin Franklin já foi um americano de gema na sua mundividência, longe qb do ideário monárquico e aristocrata que se manteve na Inglaterra ainda por muitos anos após a independência dos EUA.
Há atenuantes históricos a que Portugal pode recorrer para aliviar um pouco a carga da culpa sobre os ombros. O Brasil não fazia parte do projecto português de Quatrocentos, nem mesmo quando descoberto (por acaso ou não) durante um dos percursos para a Índia. Pêro Vaz de Caminha deixou tudo explicado em límpida escrita na sua famosa
carta a D. Manuel: Aqui não há nada que nos interesse a não ser almas para converter, mas isso não nos ocupará a nós que vamos a outra, àquilo em que estamos empenhados – a Índia. E os planos não se alteraram. Foi só quando as rotas indianas caíram nas mãos dos holandeses que Portugal começou a pensar a sério no Brasil como alternativa fonte de divisas. Mas nessa altura estávamos a braços com a própria sobrevivência como país, reunindo as poucas energias que nos restavam para nos libertarmos definitivamente do perigo castelhano. Processo que demorou um século, como todos sabemos. Enquanto os ingleses começavam a investir a sério nas suas colónias americanas, Portugal quase não tinha tempo nem forças para olhar para o Brasil (Portugal, leia-se: a liderança portuguesa). Quem o faz é o povo anónimo e pobre (excedente demográfico nortenho) que para lá vai em cata de um bocado de terra onde trabalhar para sobreviver. Os Estados Unidos entretanto já eram independentes e inteiramente vitoriosos na sua luta contra a Inglaterra quando a coroa portuguesa olhou enfim para o Brasil como futuro – lançando-se mesmo Atlântico fora até lá, mas tudo numa apressada e assustada fuga às invasões francesas, sem tempo sequer para um plano decente do que quer que fosse. Ao chegar ao Rio de Janeiro é que se apercebe de tudo ali estar por fazer.
Resumo cru, cruel e muito simplificado de uma longa história, mas não longe dos traços de fundo do que efectivamente ocorreu em três
séculos de presença portuguesa no Brasil. O bastante para os brasileiros terem razão em nos acusar de pouco ou nada termos feito, se não lhes interessarem os motivos disso, isto é, que, quando poderíamos ter intervindo, como aconteceu no Oriente, nem sequer nos poderíamos alargar mais por estarmos demasiado dispersos e sem gente nem recursos suficientes. Como dizia o historiador George Winius, espalhámo-nos demasiado em extensão e em fios demasiado ténues.
Mas voltemos às queixas: quem é que já ouviu os brasileiros apontarem elementos culturais por eles considerados positivos e que tenham sido herdados de Portugal? O que de bom por lá existe é sempre criação brasileira. Quer dizer: os cidadãos do país tiveram tempo de desenvolver-se ao seu modo e gosto – o futebol e o carnaval são apenas dois dos exemplos mais óbvios – todavia não foram capazes de se libertar do peso do passado lusitano para transformarem os traços negativos que mantêm e os amarram.
Um país como o Brasil, com os recursos de que dispõe e com as injecções extraordinárias de emigrantes que de todo o lado foi recebendo, tem inevitavelmente de sentir-se impelido a comparar-se com os EUA e nessa medida interrogar-se sobre, por exemplo, as razões de ter demorado mais de cem anos após a sua independência antes de fundar a sua primeira universidade. O Brasil já soma muito perto de dois séculos de vida independente com a obrigação de
cuidar do seu destino. Não pode, por isso continuar indefinidamente a desculpar-se acusando Portugal das suas incapacidades. A não ser que essa seja também uma característica atávica herdada da cultura lusitana: a de culpar os outros pelas nossas desgraças. Mas nesse caso voltarei ao meu ponto atrás assinalado: Se mantiveram esse traço cultural, é porque gostam de ser assim. São adultos na escolha. Todavia, para o Brasil, na infeliz situação em que está neste momento, pode ser uma consolação culpar o tetravô dos seus males correntes.
Quando serenarem as águas, não lhe faria nada mal medir as suas próprias responsabilidades nos rumos que escolheu. Para que possa então vingar-se da acusação de De Gaulle e ser realmente tomado a sério.
Onésimo Teotónio Almeida