A Casa velha da ponte
Há poucos dias atrás fui dar uma voltinha ao passado. Viajei quase 500 km para encontrar Cora Coralina na cidade velha de Goyaz.
Encontrei-a de braços cruzados na janela, “varandinha” de seu quarto. Olhava fixamente as águas murmurantes do Rio Vermelho que corriam embaixo, rente à parede de pedra de sua casa. Atravessei a rua, cruzei a ponte e entrei na morada que um dia foi dela. Moveis rústicos, ambiente simples, uma cadeira de estofamento gasto, uma bengala. Na cristaleira, algumas peças de porcelana antiga. Na cozinha, um fogão a lenha e tachos de cobre onde ela fazia os doces para ganhar a vida. No quarto, bem iluminado, uma cama em madeira escura, coberta por uma colcha de algodão branco, feita no tear. Um terço pendurado na barra, uma máquina de costura, uma cadeira ao lado da janela de onde se via o rio, a ponte, o hotel, as pessoas passando na rua. Numa pequena sala, muito clara e ventilada, uma estante com livros antigos e uma mesa para escrever poesia. O porão, todo em pedra rústica, segurava a casa e as águas do rio. O quintal era enorme, com caminhos de pedras deitadas sobre a terra, cheio de lindos recantos, água corrente, árvores frondosas e muitas plantas, paraíso de uma infância bem vivida.
Mas o que mais me encanta naquele lugar são as pedras, as pedras de Goyaz Velho. São grandes, são pequenas, redondas, angulares, cinzentas, brancas, amarelas, nunca são iguais! E quando se anda sobre elas, escuta-se o eco dos passos, é como se tivéssemos vivendo no tempo dos nossos antepassados. Gosto de entrar nos antigos casarões da cidade, sentir a sua misteriosa atmosfera, desvendar os segredos das vidas que ali um dia se abrigaram. Gosto de admirar os vitrais das seculares igrejas, de sentar nos bancos da praça, sentir o perfume das flores, ouvir as histórias dos velhos moradores, “ver” o tempo passar. E quando anoitece, da varanda do hotel, testemunho a retirada da boneca de barro, substituta da Cora Coralina de carne e osso de ontem, da janela da velha casa da ponte. Uma a uma, as janelas se fecham, as portas se cerram para os olhos dos curiosos turistas que voltarão no dia seguinte para visitarem a antiga morada da poetisa mais famosa de Goiás. Nas árvores, os pássaros acomodados se calam. Devagar o sol se esconde atrás das montanhas e um manto azul escuro salpicado de brilhantes, pouco a pouco, cobre a cidade. O carrilhão da torre da Igreja do Rosário bate profundo, anunciando a hora do “Angelus”. Ouve-se a Ave-Maria ecoar no ar. Espetados nas calçadas, os pesados lampiões de ferro se acendem espalhando pelos caminhos uma luz tíbia, amarelada. Em passos cadenciados, ecoados, as pessoas passam, sem pressa, em direção a algum já conhecido destino. Sinto uma tranqüilidade na alma, uma paz infinita, uma saudade imensa, nostálgica, de um tempo que não vivi, mas que posso imaginar!
Maria Eduarda Fagundes
Cidade de Goiás, 14/06/09.
(atualizado em Março de 2017)
Pedras
Os morros cantam para os meus sentidos
A musica dos vegetais
Que se movem ao vento
As pedras imóveis me enviam
Uma benção ancestral.
Debaixo da minha janela
Estende-se a pedra mãe.
Que mãos calejadas
E imensas mãos sofridas de escravos
A teriam posto ali,
Para sempre?
Pedras sagradas de minha cidade,
Nossa intima comunicação
Lavada pelas chuvas,
Queimada pelo sol,
Bela laje velhíssima e morena.
Eu a desejaria sobre meu túmulo
E no silencio da morte,
Você, uma pedra viva, e eu
teríamos uma fala
Do começo das eras.
Cora Coralina