A Caverna
Por estranho que possa parecer, gosta
de viver na caverna. Naquele momento, apenas lhe falta o marido para o seu bem-estar
ser completo. Quem lhe dera os dois dedos de conversa do costume, enquanto se
prepara o peixe e o vime para os cestos, enquanto se curte o couro e se ateia o
fogo.
Mas o marido saiu. Dizem que
só regressa ao pôr-do-sol.
só regressa ao pôr-do-sol.
Gosta tanto de viver na
caverna que, por vezes, esquece que o mundo se encontra em plena guerra digital
global. Ou melhor, a meio da dita
guerra, posto que os conflitos se prolongam há quatro anos e, a acreditar nos
analistas, deverão prolongar-se por quatro anos mais. Sabem o que dizem, estes
analistas. Os mesmos analistas tinham feito vaticínios, que se revelaram
acertados, quanto à duração da primeira guerra digital global. A devastação da
primeira guerra, ao contrário do que se espera dos actuais confrontos, tinha
sido considerável. Por ter sido a
primeira vez que se sofreu uma sabotagem digital generalizada, pelo ataque ter
constituído uma (quase) completa surpresa, por não estarem definidos protocolos
de prevenção, de proteção e, menos ainda, de contra-ataque.
caverna que, por vezes, esquece que o mundo se encontra em plena guerra digital
global. Ou melhor, a meio da dita
guerra, posto que os conflitos se prolongam há quatro anos e, a acreditar nos
analistas, deverão prolongar-se por quatro anos mais. Sabem o que dizem, estes
analistas. Os mesmos analistas tinham feito vaticínios, que se revelaram
acertados, quanto à duração da primeira guerra digital global. A devastação da
primeira guerra, ao contrário do que se espera dos actuais confrontos, tinha
sido considerável. Por ter sido a
primeira vez que se sofreu uma sabotagem digital generalizada, pelo ataque ter
constituído uma (quase) completa surpresa, por não estarem definidos protocolos
de prevenção, de proteção e, menos ainda, de contra-ataque.
Desta vez, no entanto, as
primeiras hostilidades encontraram-nos preparados. Foi tudo relativamente
fácil, sobretudo a evacuação dos cidadãos. ("Relativamente fácil" se
considerarmos que se evacuaram vinte milhões de pessoas). Os treinos decorriam
há tanto tempo que a população recebe a notícia do primeiro ataque na terça e
na quarta-feira já se encontra em trânsito rumo aos refúgios nas montanhas,
previamente preparados, prontos a habitar.
primeiras hostilidades encontraram-nos preparados. Foi tudo relativamente
fácil, sobretudo a evacuação dos cidadãos. ("Relativamente fácil" se
considerarmos que se evacuaram vinte milhões de pessoas). Os treinos decorriam
há tanto tempo que a população recebe a notícia do primeiro ataque na terça e
na quarta-feira já se encontra em trânsito rumo aos refúgios nas montanhas,
previamente preparados, prontos a habitar.
Fora-lhes atribuída a caverna
número quarenta e três. E ela agradecia, a quem tivesse tomado a decisão, não
apenas a escolha do local – inspirador, idílico — mas também a seleção dos
companheiros com os quais, nos últimos dois anos, construíra uma comunidade
exemplar de cooperação, de entreajuda e (porque não dizê-lo?) de verdadeira
amizade. Está consciente da ironia bárbara do que vai dizer mas agradece à
segunda guerra poder viver a vida com que sempre sonhara.
número quarenta e três. E ela agradecia, a quem tivesse tomado a decisão, não
apenas a escolha do local – inspirador, idílico — mas também a seleção dos
companheiros com os quais, nos últimos dois anos, construíra uma comunidade
exemplar de cooperação, de entreajuda e (porque não dizê-lo?) de verdadeira
amizade. Está consciente da ironia bárbara do que vai dizer mas agradece à
segunda guerra poder viver a vida com que sempre sonhara.
A primeira guerra teve o efeito contrário. Os
primeiros ataques converteram colegas de trabalho, vizinhos, amigos, até familiares, em seres dominados pelo egoísmo
mais básico e mais cruel. A natureza humana, se querem a minha opinião, não é
boa nem má, depende apenas de um bom protocolo de emergência para que não nos
envergonhe ou horrorize. Era segunda-feira e ela estava no escritório. Redigia
um relatório cujo prazo vencia em, exactamente, dois dias. Foi quando tudo começou.
As letras começaram a dançar no écrã do computador, como que tomadas de vontade
própria, de uma rebeldia súbita contra a tirania do rato. Depois
reorganizaram-se em frases ameaçadoras: "Sai
daqui, idiota!"; "Faz as tuas
orações, cretina!";"Prepara-te para o
fim, monte de esterco!"
Como ela, os colegas sairam
dos cubículos e acumularam-se no lobby,
aguardando instruções dos superiores. Tentaram contactar familiares, amigos,
autoridades. Mas os telefones não funcionavam. Ou então, se havia comunicação,
esta estabelecia-se de forma aleatória, não entre o destinador e o
destinatário, mas entre perfeitos desconhecidos. Quando apareciam mensagens,
estas vinham em línguas estrangeiras. Os telefones tocavam sem cessar e, se
eram atendidos, escutavam-se lamentos incompreensíveis, uivos de desespero,
pedidos de socorro.
primeiros ataques converteram colegas de trabalho, vizinhos, amigos, até familiares, em seres dominados pelo egoísmo
mais básico e mais cruel. A natureza humana, se querem a minha opinião, não é
boa nem má, depende apenas de um bom protocolo de emergência para que não nos
envergonhe ou horrorize. Era segunda-feira e ela estava no escritório. Redigia
um relatório cujo prazo vencia em, exactamente, dois dias. Foi quando tudo começou.
As letras começaram a dançar no écrã do computador, como que tomadas de vontade
própria, de uma rebeldia súbita contra a tirania do rato. Depois
reorganizaram-se em frases ameaçadoras: "Sai
daqui, idiota!"; "Faz as tuas
orações, cretina!";"Prepara-te para o
fim, monte de esterco!"
Como ela, os colegas sairam
dos cubículos e acumularam-se no lobby,
aguardando instruções dos superiores. Tentaram contactar familiares, amigos,
autoridades. Mas os telefones não funcionavam. Ou então, se havia comunicação,
esta estabelecia-se de forma aleatória, não entre o destinador e o
destinatário, mas entre perfeitos desconhecidos. Quando apareciam mensagens,
estas vinham em línguas estrangeiras. Os telefones tocavam sem cessar e, se
eram atendidos, escutavam-se lamentos incompreensíveis, uivos de desespero,
pedidos de socorro.
Sairam todos para a rua. O
trânsito, já controlado pelo inimigo, movia-se de forma caótica, ou melhor, de
forma minuciosamente programada de
modo a causar o maior número de acidentes no menor espaço de tempo. Carros
aceleravam inesperadamente, outros imobilizavam-se no pior momento, outros
investiam contra as passadeiras apinhadas, colhendo os peões com menor
mobilidade e pondo os mais agéis em fuga.
trânsito, já controlado pelo inimigo, movia-se de forma caótica, ou melhor, de
forma minuciosamente programada de
modo a causar o maior número de acidentes no menor espaço de tempo. Carros
aceleravam inesperadamente, outros imobilizavam-se no pior momento, outros
investiam contra as passadeiras apinhadas, colhendo os peões com menor
mobilidade e pondo os mais agéis em fuga.
Depois de caminhar durante
quilómetros enfrentando ventos ciclónicos (a sabotagem dos parques eólicos), de
errar por zonas residenciais carbonizados (o colapso dos postes de alta
tensão), de nadar em planícies alagadas onde boiavam detritos (a destruição das
barragens, das redes de abastecimento e esgotos) chegou, por fim, a casa.
quilómetros enfrentando ventos ciclónicos (a sabotagem dos parques eólicos), de
errar por zonas residenciais carbonizados (o colapso dos postes de alta
tensão), de nadar em planícies alagadas onde boiavam detritos (a destruição das
barragens, das redes de abastecimento e esgotos) chegou, por fim, a casa.
Teve de arrombar a porta pois
nenhuma das fechaduras, digitalmente controladas, respondia aos comandos.
Dentro de casa: janelas abriam e fechavam com estrondo, o sistema de
climatização alternava entre temperaturas à beira de provocarem um golpe de
calor e a um passo de causarem choque hipotérmico. Quando tentou improvisar uma
refeição, a porta do frigorífico recusou-se a aceitar o código que digitou e
não abriu. Quando a conseguiu forçar, por fim, a comida tinha apodrecido. Tentou
dormir mas — devido ao sistema de massagem automática, também comprometido —
o colchão parecia querer saltar da armação da cama assim que se deitava.
nenhuma das fechaduras, digitalmente controladas, respondia aos comandos.
Dentro de casa: janelas abriam e fechavam com estrondo, o sistema de
climatização alternava entre temperaturas à beira de provocarem um golpe de
calor e a um passo de causarem choque hipotérmico. Quando tentou improvisar uma
refeição, a porta do frigorífico recusou-se a aceitar o código que digitou e
não abriu. Quando a conseguiu forçar, por fim, a comida tinha apodrecido. Tentou
dormir mas — devido ao sistema de massagem automática, também comprometido —
o colchão parecia querer saltar da armação da cama assim que se deitava.
Decidiu então que apenas os
espaços não urbanizados ofereceriam segurança por estarem longe da grande
abóbada digital. Arrombou o guarda-fato e retirou alguma roupa. Mal vestiu o
casaco e o programou para as temperaturas quase negativas — era inverno! —
este começou a desfazer-se em fibras de algodão e a decompôr-se em fragmentos
de cabedal. Na rua, sentiu que toda a roupa, e não apenas o casaco, se rasgava,
deslaçava, desfiava a grande velocidade. Paralisou-a o que viu: prostrados, nos
passeios, definhavam os vizinhos diabéticos, o inimigo controlava a bomba de
insulina. Os de mobilidade reduzida davam grandes saltos na calçada, como coelhos electrocutados, ou gamos
enlouquecidos, pois fora assaltado o programa de estimulação muscular. Os
deprimidos corriam para ela em pânico – com braços abertos que tanto podiam ser
para abraçar como para esganar — devido a interferência criminosa no sistema
de medicação venoso-gástrica.
espaços não urbanizados ofereceriam segurança por estarem longe da grande
abóbada digital. Arrombou o guarda-fato e retirou alguma roupa. Mal vestiu o
casaco e o programou para as temperaturas quase negativas — era inverno! —
este começou a desfazer-se em fibras de algodão e a decompôr-se em fragmentos
de cabedal. Na rua, sentiu que toda a roupa, e não apenas o casaco, se rasgava,
deslaçava, desfiava a grande velocidade. Paralisou-a o que viu: prostrados, nos
passeios, definhavam os vizinhos diabéticos, o inimigo controlava a bomba de
insulina. Os de mobilidade reduzida davam grandes saltos na calçada, como coelhos electrocutados, ou gamos
enlouquecidos, pois fora assaltado o programa de estimulação muscular. Os
deprimidos corriam para ela em pânico – com braços abertos que tanto podiam ser
para abraçar como para esganar — devido a interferência criminosa no sistema
de medicação venoso-gástrica.
Só havia uma coisa a fazer:
livrar-se da roupa que restava e correr, nua, para as montanhas. Assim fez e
assim fizeram os sobreviventes da primeira guerra.
livrar-se da roupa que restava e correr, nua, para as montanhas. Assim fez e
assim fizeram os sobreviventes da primeira guerra.
Depois, sim, só depois o
Território aprendeu a lição. A reconstrução foi lenta mas dizem que tem sido
bem sucedida. E terá sido apenas temporariamente (e moderadamente) interrompida
pelo segundo conflito global. Mas este, como já mencionei, encontrou uma
população prevenida, que executou de imediato a coreografia que tão dedicamente
ensaiara e, num piscar de olhos, instalou-se confortavelmente nos
refúgios. Quase sem percalços e com
pouquíssimas baixas. Pedindo desculpa a Deus, reza para que a guerra se
prolongue muito além do que vaticinam os analistas, os tais que nunca se
enganam. E sabe que a maioria dos companheiros, apesar de não o admitirem,
pensa da mesma maneira. Que mal haveria em continuarem indefinidamente na
caverna número quarenta e três? Porque razão desejaria alguém sair do
paraíso?
Território aprendeu a lição. A reconstrução foi lenta mas dizem que tem sido
bem sucedida. E terá sido apenas temporariamente (e moderadamente) interrompida
pelo segundo conflito global. Mas este, como já mencionei, encontrou uma
população prevenida, que executou de imediato a coreografia que tão dedicamente
ensaiara e, num piscar de olhos, instalou-se confortavelmente nos
refúgios. Quase sem percalços e com
pouquíssimas baixas. Pedindo desculpa a Deus, reza para que a guerra se
prolongue muito além do que vaticinam os analistas, os tais que nunca se
enganam. E sabe que a maioria dos companheiros, apesar de não o admitirem,
pensa da mesma maneira. Que mal haveria em continuarem indefinidamente na
caverna número quarenta e três? Porque razão desejaria alguém sair do
paraíso?
— Pensativa? – disse o
marido, que acabara de chegar.
marido, que acabara de chegar.
— Onde estiveste? –
perguntou, alegre e curiosa.
perguntou, alegre e curiosa.
— Pediram-me para ir caçar.
Desculpa não ter dito nada…
Desculpa não ter dito nada…
Não são necessárias
explicações. Ela compreende. Repara que ele tem as pernas tingidas de sangue. O
mesmo sangue que ensopa a pele de cabra com que se cobre, e que goteja do
javali que arrasta, morto, para o coração da caverna. Chegam mais homens,
cansados, pedindo vinho. (Alguns coxeiam ou entram em macas primitivas, é a vida).
Deixaram as clavas e as lanças à entrada e formam um círculo à volta do fogo.
Soam gargalhadas.
explicações. Ela compreende. Repara que ele tem as pernas tingidas de sangue. O
mesmo sangue que ensopa a pele de cabra com que se cobre, e que goteja do
javali que arrasta, morto, para o coração da caverna. Chegam mais homens,
cansados, pedindo vinho. (Alguns coxeiam ou entram em macas primitivas, é a vida).
Deixaram as clavas e as lanças à entrada e formam um círculo à volta do fogo.
Soam gargalhadas.
Da próxima guerra global não
terei coisas tão agradáveis que contar. Começará – não sei exactamente quando
— com uma flecha desferida por engano na direção de um bisonte tresmalhado. Um
bisonte que pertencerá à reserva adjudicada à caverna número quarenta e quatro.
Não faltarão muitos anos. Mas ainda temos tempo.
terei coisas tão agradáveis que contar. Começará – não sei exactamente quando
— com uma flecha desferida por engano na direção de um bisonte tresmalhado. Um
bisonte que pertencerá à reserva adjudicada à caverna número quarenta e quatro.
Não faltarão muitos anos. Mas ainda temos tempo.
FIM
NOTA BIOGRÁFICA SOBRE O AUTOR:
António Ladeira nasceu em Almada, Portugal, em 1969. É licenciado em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa e doutorado em Línguas e Literaturas Hispânicas pela Universidade da Califórnia, Santa Bárbara. É actualmente professor de Literaturas Lusófonas e director do programa de português da Texas Tech University, nos EUA. Ensinou língua portuguesa e literaturas lusófonas nas Universidades de Yale e Middlebury College.Tem trabalhos académicos em publicações portuguesas e internacionais, entre as quais se incluem:Colóquio-Letras, Jornal de Letras, Artes & Ideias, Vértice, Hispania, Bulletin of Hispanic Studies, Portuguese Literary and Cultural Studies, Luso-Brazilian Review, etc. Publicou três livros de poesia em Portugal. A sua poesia tem sido incluída em antologias e revistas nacionais e internacionais, como, por exemplo, a prestigiada ‘Prairie Schooner’, ‘Relâmpago’, ou a antologia ‘Resumo’ (Assírio & Alvim/FNAC, 2010). Fez rádio. Foi colaborador do DN Jovem, onde publicou contos e poemas. Foi crítico literário no jornal Diário de Notícias. Traduziu o volume de contos do autor argentino Fernando Sorrentino "Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça" (OVNI, 2006). Letrista da cantora de jazz norte-americana Stacey Kent, nomeada para os prémios Grammy.
António Ladeira nasceu em Almada, Portugal, em 1969. É licenciado em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa e doutorado em Línguas e Literaturas Hispânicas pela Universidade da Califórnia, Santa Bárbara. É actualmente professor de Literaturas Lusófonas e director do programa de português da Texas Tech University, nos EUA. Ensinou língua portuguesa e literaturas lusófonas nas Universidades de Yale e Middlebury College.Tem trabalhos académicos em publicações