A Consulta do Espião
– Recorri a si, senhor doutor, porque ninguém me compreende e eu já estou a ficar meio maluco. Esta terra é tão bonita! Agora vou ter que a deixar, refugiando-me em parte incerta. Passarei a ser não um emigrante mas um refugiado. Serei olhado com desconfiança por toda a gente. Compreende o que lhe estou a dizer?
– Sou chinês, mas não sou estúpido.
– Não me entenda mal, receava apenas que não compreendesse o meu inglês. Uma vez que o senhor está habituado ao inglês europeu e eu sou americano. Estou muito mal. Todos pensam o pior de mim. Chamam-me bufo, saco-roto, e mais não sei quantos epítetos, cada qual o mais desagradável!
– Whistle-blower, não é? É um verdadeiro apito.
– É pior, significa delator ou traidor. Mas eu realmente amo a minha pátria. Queria que os Estados Unidos fossem o país mais limpo do mundo, percebe?
O chinês olhou-o fixamente por uns momentos. Depois guardou silêncio por longo tempo. Era médico de clínica geral, não de psiquiatria. Não sabia muito bem como havia de explicar àquele homem alto e bem-parecido, aparentemente frontal, o que lhe ia na alma. O caso dele não era grave, era gravíssimo. Não se recordava de um único espião chinês que se tivesse deixado levar por uma crise de consciência. Ou bem que se era espião ou não se era. Se tinha vocação para santo, por que não se recolhera numa qualquer bonzaria a meditar sobre os males do mundo? Contudo, não podia deixar de simpatizar com a aparência dele, particularmente com o seu aspecto lavadinho. Era o dobro dele em tamanho e não apresentava qualquer redondeza corporal, muito escorreito. Sim, senhor. Era do tipo dos que não se deixavam tentar pela comida, ao contrário dele, bastante baixo e cheio de tentações carnais. Apesar de ser como era, nunca se lembraria de fazer semelhante coisa. Quando retomou a palavra, empregou um tom seco e afirmativo para não se deixar enredar na teia sentimental que o outro lhe estendia.
– No meu país há uma clara divisão entre servir os interesses pessoais e servir a pátria. O senhor trabalha para si ou para os seus cidadãos?
– Quando denunciei os segredos do meu país foi a pensar nas pessoas comuns, que tinham direito a ver a sua privacidade resguardada. Vivemos vergados aos interesses político-económicos. Não pode ser: prezo a liberdade e a privacidade acima de tudo.
– Que belos e grandiosos valores, mas todos os países fazem espionagem e não andam a lavar a roupa suja em público. São as regras do jogo. Preocupam-se acima de tudo em proteger o seu território contra possíveis ataques alheios. A segurança nacional, meu senhor, é um caso muito sério. Também aprecio a liberdade e a privacidade, mas ao nível das pessoas, compreende? Vivo em Hong Kong, um território que conviveu por século e meio de muito perto com os valores ocidentais. Fui tocado. Ainda assim não esqueço que pertenço a uma das civilizações mais antigas do planeta, que no século IV antes da nossa era deu ao mundo uma obra de estratégia admirável, intitulada A Arte da Guerra (sunzi binfa孫子兵法). Devia lê-la. É dum venerável estratega chamado Sunzi (孫子). Ele faz um longo elogio à espionagem como meio eficaz para salvaguarda dos estados e até para prevenção das guerras. Diz mesmo qualquer coisa do tipo: quem conhece o inimigo pode vencer todas as batalhas. E no entanto ele era bastante pacífico, pois defendia que evitar guerras era muito melhor do que vencê-las.
Se denunciar os planos de segurança do seu país, está a fragilizá-lo perante a comunidade internacional, empurrando-o eventualmente, mesmo que não seja essa a sua intenção, para a guerra.
– A última coisa que desejava era ver o meu país em guerra.
– Se assim é porque o expõe ao mundo? Julgará que todos têm os seus problemas de consciência? Muitos nem sequer sabem que essa palavra existe e apenas aguardam por uma oportunidade propícia para atacar.
Uma coisa é espiar, guindado no ideal de defesa nacional, outra é roubar, portanto nem todos os actos de espionagem têm o mesmo valor. A única espionagem que tolero, à maneira do meu velho sábio, é aquela feita a pensar em evitar guerras. Creio que não ponderou todos os ângulos desta espinhosa questão. A espionagem que tem em vista a pura destruição, perpetrada com o objectivo de provocar a desordem e o caos só merece desprezo, mas está certo que a exposta por si era desse tipo?
– Há muito que estou insatisfeito com os métodos bélicos do meu país. Considera correcto que os americanos tenham terminado a Segunda Guerra Mundial com duas devastadoras bombas atómicas no Japão? Estive em Hiroshima e Nagasaqui e posso afiançar-lhe, com grande pesar, que ainda hoje se sentem as consequências das bombas atómicas. Há de resto museus que não nos deixam esquecer tal violência…
– Sou chinês, não sou japonês, não obstante também me custa pensar que a Segunda Guerra Mundial tenha tido tão pesado custo. Ora o que me diz, volta a recordar-me as palavras do velho sábio. O principal motor de uma verdadeira estratégia é evitar a guerra, com toda a arte e manha, à qual pertence a espionagem.
– Quer então dizer que estou perdido? Ninguém gosta de mim. Os americanos não confiam em mim e os outros povos também não.
– Não me parece que assim seja. As boas intenções têm sempre apoiantes, com certeza que contará com admiradores. Vai encontrá-los em todos aqueles que proclamam as liberdades individuais e a privacidade acima de todos os outros valores.
– Sim, mas eu gostava que os governantes do meu país aceitassem as minhas ideias. Não quero passar o resto dos meus dias exilado em qualquer lugar para o qual fui empurrado pela força das circunstâncias. Aspiro a ser um cidadão americano livre e a defender as minhas ideias abertamente nos Estados Unidos.
– Não me parece que isso seja possível. Na China não era. Nem pense que pode ser adoptado pelos chineses e muito menos pelo governo chinês, porque se apresenta como arauto de teorias que vão contra a nossa tradição mais enraizada.
– Estou condenado a ser um marginal votado ao escárnio e desprezo da comunidade internacional?
– Bem, sou médico e posso tentar ajudá-lo dentro do meu campo. Creio que só tem uma saída que não passa naturalmente pela insistência na pureza de intenções. Oiça com atenção. Alguma vez sofreu um traumatismo grave?
– Um não, vários. Certa vez dei uma queda monumental de que resultaram vários membros partidos.
– Membros inferiores ou superiores?
– Membros inferiores.
– Tenho muita pena, mas não é por aí. Preciso da revelação de algo mais sério com consequências cerebrais profundas.
– Está a insinuar que sou louco?
– Longe de mim tal coisa. Apenas retiro ilações do seu comportamento. Limito-me a constatar factos. O meu diagnóstico, mesmo sem exame neurológico, aponta para um sério traumatismo craniano.
– Sofri o quê?
– Pense bem. Nos exercícios militares em que esteve envolvido não o agrediram na cabeça? Nunca levou uma forte pancada que lhe tenha afectado o lado direito do cérebro, aquele que domina a inteligência, ou melhor dizendo, o pensamento lógico?
– Está a chamar-me burro?
– Nada disso. Não se ponha a interpretar as minhas palavras, vendo nelas acusações que não existem. O seu comportamento é profundamente emocional, ora como já não é nenhuma criança, talvez consiga encontrar causas físicas para explicar as suas opções.
– Não sei se ria ou se chore. Acabou de me dizer que os meus ideais são infantis.
– Treslê novamente. Os seus ideais são muitíssimo louváveis, é o modo como lida com eles que me leva a suspeitar de lesões físicas ou de uma profunda lavagem cerebral. Não me leve a mal a pergunta, mas consome drogas?
– Já faltou mais para abandonar este consultório. Olhe bem para mim: tenho cara de toxicodependente?
– Não,
pelo contrário, tem o aspecto mais correcto do universo. Portanto só nos resta a hipótese da pancada. Sofreu ou não uma lesão cerebral grave? Pense bem antes de responder e recorde-se que estou a ajudá-lo, porque também eu acredito na liberdade e na privacidade, ainda que não levada aos extremos propostos por si.
– Por acaso sofri um grave acidente em que bati com a cabeça no chão. De momento não me recordo qual foi o lado mais afectado, a mim pareceu-me ter sido o cérebro todo, mas não tenho conhecimentos de medicina…
– É capaz de reconstituir esse episódio traumático perante um tribunal americano, de uma forma credível, capaz de convencer um juiz e um banco de jurados prontos a condená-lo?
– Sou.
– Então regresse aos Estados Unidos para se defender. Boa sorte. E não volte a cair noutra.
– Obrigado.
– Mais um conselho: aproveite para ler na longa viagem que o aguarda a Arte da Guerra, é muito interessante.
– Por que razão me quer converter à sabedoria chinesa?
– Ninguém pretende a sua conversão, apenas que aprenda a conviver com opiniões divergentes sobre temas que muito o apaixonam. Bom, vá-se lá embora, não perca mais tempo. Seguirei o desenrolar dos acontecimentos com todo o interesse.
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