1 – Tripulantes da caravana do futuro
Há cerca de cinco séculos os açoreanos começaram o infindável percurso do seu relacionamento “amor-ódio” com a distância, uma das filhas da ditadura geográfica. Não hesito a considerar os ilhéus como “açores” com asas maiores do que o próprio ninho. Os ilhéus que aprenderam à própria custa o alfabeto da emigração descobrem depressa que a sua ilha não é apenas o berço natalício que deixam atrás pregado à rocha. Não. A ilha é a eterna companheira de jornada: o ilhéu parte com a velha malado sonho cheia de nada, mas a coragem faz excesso de bagagem…
Hoje em dia, a emigração confunde-se com a globalização: a pobreza já não emigra, apenas muda de residência. Partir já não é morrer um pouco, como disse o poeta. Diria que partir é adiar a morte-lenta da rotina. Em termos romântico-passadistas, diria que a emigração promete acabar os seus dias nos prateleiros do património museológico do cinismo cultural…
Emigrar não é pecado. Nem os emigrantes são escravos do destino. O desejável seria que o destino deixasse de ser destino. Pessoalmente, ninguém nos ensinou a escolher a Califórnia, o canterio do sonho americano aonde viemos parar depois vinte anos na Nova Inglaterra. Vivemos nos alvores do seculo XXI: temos de esquecer a “dor de parto” da partida. Os ilhéus-atlantas foram aqui chegando como tripulantes da caravana do futuro. As romarias da saudade vieram mais tarde… com as suas “sapateias” de encomenda…
Curiosamente, a maioria dos ilhéus oriundos dos grupos central e ocidental nunca se deixou seduzir pelos têxteis da Nova Inglaterra. Como a vontade dos ilhéus sempre cresceu na vertical, a pequenez das ilhas não terá sido impecilho maior para a imaginação e para a criatividade da sua autonomia comunitária. Mas o “casto luto da mudança” teve de se emancipar depressa da noção funerária da partida. Logo que os ilhéus começaram a sentir a opressão do “colete-de-forças” dos donatários modernos, a vontade de “voar” na direcção dos horizontes do “mundo-novo” começou a germinar no apertado canteiro das suas magras possibilidades. E assim foi.
Mas voltemos à Califórnia. Confesso que desde novinho fiquei cativo do “feitiço” da imensidade californiana. Em finais da década de 50, a minha geração passava as tardes de domingo a ver as “cowboyadas” da moda. Uma vez ultrapassada a fase da glorificação militarista pós II Guerra Mundial, ficámos à mercê das poeirentas estórias cinematográficas dirigidas pelo cineasta John Ford. Todos se lembram dos famosos “aguaceiros de sopapos” e dos tiroteios pré-anunciados: os filmes terminavam quase sempre com menos índios vivos nas pradarias, mas não falhavam na gorjeta final do subentendido ‘beijo” demorado dos principais protagonistas… enquanto o lenço da despedidda (“the end”) vinha ao encontro dos nossos bolsitos esvaziados pelo preço do bilhete …
Mesmo quando os exteriores dessas fitas eram registados (creio por imperativos orçamentais) em território mexicano, a nossa ingenuidade adolescente só tinha olhos para se deliciar com as infindáveis pradarias californinas, com a claridade monumental da sua paisagem, sobretudo com a informalidade apetitosa do relacionamento das pessoas com a generosa natureza circundante.
2 – cultura popular versus indústria turística
Com o devido respeito pela franciscana paciência do nosso “leitorado”, não vamos hoje dissecar as causas originais por que o ilhéu micaelense (ao contrário dos seus irmãos do grupo central e ocidental) se resignou ao destino traçado pelos capitães da indústria de tecelagem da Nova Inglaterra. Estou confiante de que a análise responsável desses factos já mereceu o estudo aturado dos especialistas na matéria. Não custa admitir que ambos os lados do Atlântico têm culpas no cartório.
Ora para preservar a memória da vida seria preciso esquecer o resto, ou seja: o curioso fenómeno do “teleological racism” praticado entre os emigrantes alienados por que deixados à deriva num contexto sócio-económico muito afim à chamada “herrenvolk democracy” (elitismo cultural do corporativismo ivy-league académico… tão idolatrado pela confraria açor-lusitana)…
Seja-me permitido lembrar: logo que o século XXI abriu suas janelas ao calendário em vigor, resolvemos reemigrar em direccão à Califórnia. Aqui continuamos como aprendiz da vida, na periferia duma arena étnico-cultural que os estudiosos já deram a “alcunha académica” de Mexifórnia. Na sequência da revolução industrial (que provocou o feliz desassossego da mobilidade social), a globalização electrónica criou a paranóia da instantaneidade. A fronteira que divide a inteligência biológica da chamada “inteligência artificial” não pode ser guardada pela força, mas sim pela velocidade. Aliás desconfio estar para breve a consagração dos “direitos” reclamados pelas máquinas com “inteligência-não-biológica”…
O acesso democrático ao prazer, o risco voluntário pela aventura do desconhecido, a saudável ilusão de que a velhice… é aquilo que só acontece aos outros: são fenómenos relativamente recentes. No passado, aqueles que logravam alcançar o estatuto existencial de “boa-vida” corriam o risco de pisar terrenos pecaminosos. As viagens de recreio e os passeios às “curas climáticas” estavam reservados aos grandes lordes do capitalismo. De resto, há ainda uma teimosa confusão entre “cultura popular” e indústria turística. A incrível instantaneidade global faz do “presente” um episódio insignificante; e a saudade, como marca registada da nostalgia lusitana, corre o risco de ser “despromovida” ao estatuto de preservativo emocional do imaginário colectivo…
Termino já. Temos aprendido que o estado da Califórnia é sobretudo um “estado de espírito”. Sem perder a humildade na procura e na preservação da sombra maternal da nossa árvore étnica, conviria não esquecer a convivência dos imigrantes na vasta floresta do multi-culturalismo americano, ou seja: a diversidade das suas especificidades geográficas, geológicas e humanas é, afinal, o grande aliado psicológico dos ilhéus açoreanos.
Mas… e os terramotos? Ora como vivemos a escassas três milhas do famoso Saint Andreas Fault (falo por mim) é bom não esquecer que a humanidade continua a habitar a crosta terrestre com licença da geologia…
P.S. – Estivemos a dedilhar estas breves considerações em nome pessoal. A tentação de dizer coisas originais não faz parte da constelação dos nossos pecados. Mas nem tudo se perde quando conversamos fraternalmente àcerca de temas estranhos aos compêndios da comédia oficial da solidariedade piegas receitada pelos funcionários da saudade, em especial aqueles que se especializaram no bocejo transcendental…
João-Luís de Medeiros
Rancho Mirage, Califórnia
Julho 2010
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