A cada ano a festa apresenta uma programação cultural formatada em cima do resgate de usos e costumes da freguesia que fazem parte da memória coletiva, envolvendo de alguma forma todos os moradores do lugar. Uma semana antes, terça-feira à noite, acontece a abertura oficial da festa com Novena na Igreja Nossa Senhora das Necessidades em homenagem aos ex-Imperadores, seguida de palestra sobre a festa do Divino e apresentação de danças folclóricas como o Pau-de-fita e Arco das flores, Ratoeira e Balaio, abertura de exposições com artistas da região e lançamento de livros. Na quinta-feira ao cair da noite no Engenho de Farinha de Mandioca da Agenor de Andrade, no Caminho dos Açores, realiza-se a última novena, cantada em latim, seguida de tradicional farinhada com distribuição de farinha, bijus e cuscuz e apresentação de cantoria do Divino, grupos musicais e folclóricos. Uma noite animada que traz gente de toda parte da Ilha e do Continente. À busca das raízes, o cultivo e a partilha das tradições mais legítimas da freguesia passou a ser o grande diferencial da festividade.
A programação do sábado e domingo respeita a tradição local e que se reproduz há mais de duzentos anos.
No sábado, por volta das 19 horas o Cortejo Imperial segue em direção à Capela para participar da Missa Solene e coroação da imagem secular da Nossa Senhora das Necessidades. Um ritual introduzido em 1935 quando o Pároco Pe. Bernardo Bläsing, por desconhecer as tradições locais e não aceitar os rituais da Festa do Divino resolveu impedir a coroação do “menino-Rei”. Já que não se podia coroar o “menino-Rei” coroa-se a Nossa Senhora, decidiu o Imperador daquele ano. Os moradores não podiam concordar com a interferência direta do pároco no costume secular da freguesia: a imposição solene da Coroa do Divino ao “menino-Rei”, uma herança de seus antepassados açorianos e que constituí a essência do festejo. Afinal, a Festa do Divino é promovida pelo povo e sua realização independe da aceitação ou não de qualquer autoridade seja ela religiosa e civil. Todavia, a comunidade aceitou a instituição da cerimônia de Coroação de Nossa Senhora das Necessidades e a mesma passou a integrar a ritualística da Festa. Assim, na missa do sábado coroa-se a Padroeira e no domingo, na missa das 10h30min, o menino-Rei é coroado pelo pároco.
No domingo, após a missa da coroação, o Casal Imperial e toda a Corte, tendo a frente o Rei e a Rainha, são conduzidos para o Salão Paroquial num espaço ricamente decorado representando o antigo Império ou teatro, pequena construção próxima a Igreja que abrigava as alfaias do Divino, e que foi demolida em 1956, onde recebem os cumprimentos dos devotos que beijam a pombinha do Cetro de prata e a Bandeira do Divino. Ao lado do “trono” estão expostas as massas de promessas com formato de braço,perna,coração,partes do corpo que motivaram o ex-voto. Estas massas são bentas durante a missa e posteriormente vendidas.
No final da tarde de domingo, mais uma vez, as porta-bandeiras abrem caminho para a passagem do Cortejo Imperial, acompanhados do Pároco e da Irmandade, sob os acordes da tradicional Banda Sociedade Musical Amor à Arte e seguem para a Igreja onde assistirão a Missa de encerramento da festa, a divulgação do novo Casal Imperial e dos juízes do próximo ano. A transmissão da Coroa do Divino, o Cetro e a Bandeira assinala a posse do Casal Imperial que presidirá as festividades do próximo ano.
No adro da Igreja e nas ruas circundantes a festa popular continua com muita animação na grande barraca armada para as apresentações folclóricas e shows musicais e nas inúmeras barraquinhas que vendem comida, bebida e promovem sorteios de prendas e bingos com grande participação da população.
A festa de 1998 foi um divisor na organização da festividade ao trazer à tona sua história e seus valores culturais partilhados com muito orgulho e influenciando de forma muito positiva a vida comunitária. Uma mudança cultural e social nascida do consenso, do desejo de não deixar morrer a sua memória e que buscou nas suas raízes o jeito certo de mantê-las fortalecidas, mesmo que tenham que (re)inventar a sua tradição para recuperá-la e transmiti-la com dignidade para as novas gerações. Uma cadeia de heranças culturais e maneiras de ser e estar na freguesia que vem passando por sucessivas gerações.
A história da família de Gabriel Vaz Pires, o atual Provedor da Irmandade do Divino Espírito Santo e de Nossa Senhora das Necessidades e que no ano de 1998 foi Imperador da festa retrata bem esta teia de relações sociais e familiares que gravitam em torno da secular celebração. A história da Irmandade e da Festa do Divino Espírito Santo de Santo Antônio de Lisboa confunde-se com a vida dessa tradicional família, de fortes princípios religiosos, cujos antepassados vieram da Ilha Terceira, na grande emigração do século XVIII. Uma sucessão hereditária curiosa que pode ser constatada tanto nos Livros de Atas da Irmandade quanto na historiografia da Festa do Divino onde aparece com freqüência o nome da família Pires desde 1935 quando o pai de Gabriel, Roldão da Rocha Pires, foi Imperador do Divino e seu irmão, Benjamim Amaro, coroado Rei. Em 1968 Benjamin Amaro Pires viria a ser Imperador e Gabriel, então com 8 anos de idade, foi o menino- Rei. Trinta anos depois, Gabriel Vaz Pires foi escolhido para Imperador e levou seu filho Lucas Campos Pires para ser coroado Rei. Uma inquestionável aproximação de gerações num mesmo espaço e partilhando outros tempos – o passado, o hoje e o amanhã – que também se reencontram na mítica do Divino.
O desejo de (re) aproximar raízes separadas e revivificar elos longínquos no tempo e no espaço, partes de memórias de um percurso secular e fazer deste imenso mar, que nos separa e nos une, um portal de comunicação, de passagem, e deixar navegar a alma da nossa gente saída das duas margens do Atlântico foi a grande motivação da Festa do Divino de 2003, quando lá da vila da Madalena, da lha do Pico, chegou a Santo Antônio de Lisboa a Sociedade Filarmônica União e Progresso Madalense, um grupo com cerca de sessenta componentes, entre músicos, dirigentes e familiares. Integrava a comitiva açoriana o Pároco da Igreja Matriz Santa Maria Madalena, Padre Marco Martinho.
Uma visita que ficou na história e no coração dos catarinenses e dos picarotos e fortaleceu laços de amizade e de fraternidade entre os herdeiros de um mesmo legado histórico e cultural. A maior prova dessa íntima relação com os ilustres visitantes da Ilha do Pico é a biografia do Padre Lourenço Rodrigues de Andrade, o brilhante padre, vigário, professor, líder político, primeiro deputado catarinense e senador do Império, que sendo natural de Sambaqui, onde nasceu a 2 de agosto de 1762, era filho de pais açorianos. Seu pai nasceu na Ilha do Faial e sua mãe na freguesia da Madalena, na Ilha do Pico.
A Igreja de Nossa Senhora das Necessidades resplandecia com a capela-mor, os altares laterais, teto, bancos e corredor central, decorados na cores branca e vermelha, símbolo do Espírito Santo. Chegara o instante da realização da Missa Solene de Coroação do Rei à moda da Freguesia de Santo Antônio e à moda da Vila da Madalena da Ilha do Pico. O Coral Santa Cecília harpejava e o seu suave canto inundava o ambiente sagrado e alimentava a alma do povo que se acotovelava nos estreitos bancos, lotando a centenária Igreja, acompanhando e participando passo a passo da tocante cerimônia de coroação.
No momento da imposição solene da Coroa do Divino, ao som do Veni Creator Spiritus, quando Pe.Aquilino coroou o menino-Rei e Pe.Marcos o maestro da Filarmônica, Manoel Machado, sentia-se o tempo respirar lentamente como se ficasse suspenso. Sim, como se, finalmente, o tempo tivesse sido amarrado entre o agora e o outrora. Entre nossas memórias de ontem e de hoje e bem vincadas
nas artérias que correm direto por caminhos, geografias e histórias dos afetos de tantas gerações. Ficou, apenas, um único espaço. Este, no seio da Igreja, intensamente partilhado, vívido, reconstituindo imagens e feições do festejo de outrora para lá do palimpsesto do tempo.
Assim, a cada ano, na Missa de transmissão da Coroa do Divino ao novo Casal Imperial assiste-se a renovação de um compromisso firmado perante toda a gente da freguesia de Santo Antônio de Lisboa. Idêntico compromisso que se faz ouvir por caminhos do Divino abertos pela Ilha de Santa Catarina e continente fronteiriço.
Trilhá-los é reacender junto ao espelho da memória coletiva parte de um caminho do passado de todos nós, imagens de realidades de agora.
Nota: texto adaptado do cap.”Santo de Santo Antônio de Lisboa”,In:Caminhos do Divino – um olhar sobre a Festa do Espírito Santo em Santa Catarina,182:194.Insular. Florianópolis,2007.