A Graciosa ilha
Não é impunemente que se nasce na segunda mais pequena ilha dos Açores, onde a terra é pouca, o mar é vasto e o sonho é enorme…
Por isso faço, desde já, uma declaração de interesses: sou graciosense com muito orgulho e saudade.
A Graciosa faz parte da minha memória primeira e do meu imaginário afetivo. Foi nesta ilha que despertei para a vida, para o mundo e para o conhecimento das coisas. Saí um dia da Graciosa, mas a Graciosa não saiu de mim – ela navega em mim, carrego-a dentro de mim. Por isso mesmo sinto o direito e o dever de reivindicar aquilo que, dentro e fora de fóruns de debate, tenho vindo a chamar de graciosensidade, conceito que criei a partir de açorianidade, de Vitorino Nemésio. E a minha graciosensidade é precisamente o meu apego e o meu amor incondicional pela ilha Graciosa, é a minha marca de identidade e de identificação com o espaço graciosense.
A Graciosa, com 61 km2 e 4.390 habitantes, é de todas as ilhas dos Açores a menos montanhosa e húmida. “Ilha branca” lhe chamaram, ao que se julga saber devido à abundância de traquito, a rocha que vista ao longe terá dado a impressão de ser branca aos olhos dos nossos primeiros povoadores. Daí a toponímia da ilha: Barro Branco, Pedras Brancas, Serra Branca.
Esta ilha seduz o visitante pela sua paisagem feita de planuras, montes arredondados cobertos de árvores, vinhas entre paredes de pedra negra, campos de cultivo e a presença constante do mar. O conceito da Natureza intocada aplica-se aqui às mil maravilhas. Possuindo um dos mais ricos ecossistemas do mundo, a Graciosa é, desde 2007, Reserva da Biosfera declarada pela UNESCO.
Se o leitor quiser fazer uma “viagem ao centro da terra”, não se fique pelo Júlio Verne e vá visitar a inquietante beleza da Furna do Enxofre, fenómeno vulcanológico raro e geologicamente único no mundo. Trata-se de uma depressão existente no subsolo da Caldeira – cratera de uma antigo vulcão – onde se dá um fenómeno de libertação de gases sulfurosos provenientes de uma massa fluída em permanente ebulição localizada no interior mais recôndito da caverna. Comunica com o exterior através de duas aberturas, e em 1939, na maior delas, foi construída por um simples mestre pedreiro, sob a orientação do tenente Manuel Severo dos Reis, uma imponente escadaria (em caracol) de acesso, em alvenaria aparelhada, hoje apontada como um exemplo feliz em termos de engenharia ambiental. Durante muito tempo, e antes da sua construção, quem quisesse conhecer a Furna tinha que descer amarrado pela cintura. O naturalista Fouqué, em 1873, e o príncipe Alberto de Mónaco, a partir de 1879, foram os primeiros a estudar a Furna, chamando a atenção da comunidade científica internacional para o seu interesse e originalidade.
Descendo os 184 degraus da referida escadaria, deparamos com um profundo túnel com cerca de 100 metros de profundidade. No fundo, uma enorme gruta, com abóbada de 80 metros de altura, revestida de estalactites e um lago subterrâneo, de água fria e sulfurosa, com cerca de 130 metros de diâmetro e 15 metros de profundidade máxima. Um assombro! “Catedral de lavas ínvias”, chamou Vitorino Nemésio a este assombro. (“Vulva vulcânica” lhe chamei eu num poema). E se Raul Brandão, na sua viagem efetuada pelo Açores em 1924, tivesse desembarcado na Graciosa, tenho a impressão que o livro As Ilhas Desconhecidas teria mais um capítulo…
Emoldurada por vistosos moinhos de vento, Santa Cruz, situada na costa norte e sede do concelho, é uma vila pitoresca com ruas desafogadas e belos exemplares de edificação senhorial – soberbas casas solarengas que pertenceram a gente que, no século XIX, enriqueceu à custa das duas grandes produções da ilha: vinho e cereais. O traçado da rede urbana é harmonioso, reflexo de um desenvolvimento pensado e não caótico. No centro da vila existem dois pauis (tanques) murados que se destinavam à recolha da água das chuvas e que noutros tempos eram utilizados como reservatório de água para o gado. Em frente, encontra-se uma ampla praça – Rossio – com um maciço de araucárias, ulmeiros e metrosíderos que oferecem beleza e frescura. A hoje denominada Praça Fontes Pereira de Melo é o salão de visitas da vila, espaço acolhedor de lazer e convívio, sendo de apreciar o empedrado artístico da sua calçada. E depois há a igreja Matriz com fachada ornada por grossos motivos barrocos de pedra basáltica. O templo guarda os famosos Painéis Quinhentistas, possivelmente da autoria de Cristóvão de Figueiredo, valiosas peças com projeção nacional e internacional. Apesar das suas pequenas dimensões, a Graciosa possui atualmente 10 igrejas e 22 ermidas, o que constitui um importante património religioso.
A sul de Santa Cruz localiza-se São Mateus (Praia), numa zona plana e abrigada, estruturando-se a partir de uma via marginal que constitui o eixo de uma pequena estrutura urbana. Na rua marginal, defronte para a praia, existe uma linha bem organizada de edifícios, de cores claras e fachadas simples, dando um ar de homogeneidade ao conjunto. A Praia alberga o porto de passageiros e carga da Graciosa, e o seu ilhéu reveste-se de especial importância como habitat de aves marinhas pelágicas.
As freguesias Guadalupe e Luz são típicas povoações rurais com casas brancas rodeadas de campos de cultivo. Na Luz encontram-se as famosas Termas do Carapacho, descobertas em 1750, cujas águas (cloretadas, sódicas, sulfatadas e cálcidas) são recomendadas para tratamento de nevralgias, doenças reumáticas e de pele. Aqui se faz termalismo de excelência.
Os graciosenses cumprem, na sua ilha, ciclos e ritos ancestrais – nessa subtil fronteira que separa o sacro do profano. E, dotados de uma alegria de viver, mantêm bem vivas as tradições populares: uma especial apetência pela festa, pela folia e pela música, com um gosto muito especial por animadíssimos bailes de salão, sendo de destacar um peculiar baile antigo (baile mandado). Mas a ilha marca outras diferenças: possui uma onomástica sui generis; uma forte tradição pianística; o seu Carnaval (com nítida influência brasileira) é caso único em Portugal porque tem a duração de 3 meses e não de 3 dias…
E mais: existem duas cantigas populares genuinamente graciosenses: “José” e “Terceira”. A gastronomia é de primeiríssima água e a doçaria não tem igual: queijadas, pastéis de arroz, para já não falar das dulcíssimas meloas… A Graciosa já teve mais vinho do que água. Por isso continuamos hoje a apreciar os seus brancos e verdelhos, bem como as aguardentes envelhecidas durante 14 anos em cascos de carvalho. E convém destacar a andaia, bebida licorosa caseira, que tem origem no Brasil e foi trazida para a Graciosa no seculo XIX por emigrantes graciosenses.
De facto, uma ilha pequena como esta luta para ser diferente. Só mais três exemplos: a Graciosa é hoje a capital dos Açores no que à fotografia subaquática diz respeito; o município de Santa Cruz lidera o ranking, a nível nacional, de recolha seletiva de papel e cartão; a ilha está a dar passos decisivos nas energias renováveis.
Os graciosenses, no seu modo de viver pacato e ordeiro, são afáveis, alegres, hospitaleiros e comunicativos, sempre disponíveis para os comes e bebes… E esta é sem dúvida uma maneira de ser feliz.
– Victor Rui Dores