A Homenagem a Fernando Aires
**
Vamberto Freitas
Nenhum grande escritor está desassociado das suas geografias de memórias e afectos. Depois, existem lugares, grandes cidades ou meros sítios, que marcam indelevelmente a literatura do seu tempo ou de toda uma geração, ou ficam para sempre no nosso imaginário porque certos escritores marcantes os recriaram obsessivamente. No século passado, eis aí alguns exemplos, o sul dos Estados Unidos, o Nordeste do Brasil, a Irlanda de Joyce, o Alentejo do Continente português — e as ilhas açorianas, muito antes e muito depois de Nemésio. Entre a nossa geração, entre os recém-falecidos e os que estão vivos, Fernando Aires ocupa um dos espaços literários mais profundos e originais da Literatura Açoriana contemporânea, por todas as razões que certas linguagens se tornam em arte, mas também pelo reinventar, reimaginar ou redizer o lugar de partida para o mundo, e de acolhimento após as essenciais viagens de descobertas possíveis e sonhadas. Não será por acaso que um dos nossos mais universalizados pensadores – Fernando Aires era formado em filosofia e história – não conseguia deixar o aconchego do torrão natal, da sua “pátria” muito pessoal e íntima confinada a poucos quilómetros da ilha de S. Miguel. Quando cá cheguei há 20 anos, creio que ele ainda não tinha a certeza de como se tomava a estrada para o Nordeste. Das outras ilhas, recordava o que havia lido ou visto ao longe: falava-me da minha Ilha Terceira como quem tenta entender um outro qualquer “país” lusófono. Só que produziu uma obra, repita-se, de tal grandeza que o leitor a interiorizava de imediato passando a ver os seus próprios mundos pela lente poética da sua ficção, e muito especialmente por qualquer entrada dos cinco volumes do diário Era Uma Vez O Tempo. Foi assim que demarcou e reinventou o seu “pequeno” espaço, entregando-nos novas geografias alargadas e que agora fazemos nossas.
Fernando Aires faleceu em Ponta Delgadahá pouco mais de ano, e recebeu de imediato o reconhecimento público que dias antes era ainda apenas sussurrado entre os seus leitores nas ilhas e no resto do país, assim como por outros no estrangeiro onde a lusofonia criativa é atentamente acompanhada, desde o Brasil e Estados Unidos à Europa. Esse eco prolonga-se e espalha-se agora com a homenagem que lhe foi prestada a 19 de Dezembro com o descerramento de uma lápide em sua casa na Avenida Príncipe de Mónaco e o lançamento do volumoso Era Uma Vez O Seu Tempo: Homenagem de Amigos e Admiradores, no Centro Cultural da Caloura, do pintor e seu amigo de sempre Tomaz Vieira; avenida e sítio, pois, sempre presentes nas suas páginas, espaços da sua maior intimidade familiar e carinho pátrio. Organizado por Leonor Simas-Almeida, Maria João Ruivo Sousa (filha do escritor) e Onésimo T. Almeida, o livro congrega textos de um grande número de amigos e leitores de diversas proveniências e estações de vida, desde académicos, escritores e poetas a críticos e ensaístas que chegaram à obra de Fernando Aires a partir do início ou que o iam descobrindo com o passar do tempo e pelas vozes que nunca deixariam de o recomendar. Com textos de circunstância e com estudos e ensaios, Era Uma Vez O Seu Tempo passa agora a ser referência obrigatória para quem ainda valoriza a literatura como antídoto às tempestades reais e oportunistas que nos assolam no momento. Todo o resto passa e é esquecido, menos a Arte, único repositório da memória dos tempos e dos povos, único “julgamento” de valores e modos de vida em qualquer recanto do globo, única aproximação duradoura entre as mais variadas línguas e culturas. Quanto mais dúvidas nos suscitam os afazeres ou ficções políticas do dia, maior a certeza e conforto encontramos nas páginas de um livro, num quadro pendurado, numa peça musical ou teatral, num gesto de mão estendida ou palavra partilhada. Que alguns dos nossos escritores, vivos e falecidos, têm sido solenemente lembrados neste últimos anos só poderá significar que estamos para além da reinante mentira pública – ainda reconhecemos e separamos o trigo do joio, o que nos abre a alma ou nos encerra na miséria de espírito.
“Era a discrição – escreve o ensaísta e crítico Eugénio Lisboa num breve artigo que publicou no JL logo a após o falecimento do autor – personificada, uma vocação única para o autoapagamento, uma voz sensível e profunda, que dava às páginas do seu diário uma tonalidade inconfundível, que só encontramos nos grandes diaristas de certa estirpe, por exemplo, um Julien Green. Os cinco volumes publicados do seu diário ficarão, creio eu, como um dos melhores momentos da diarística nacional, ao lado dos de Raul Brandão, Miguel Torga, Vergílio Ferreira e Manuel Laranjeira, pela subtileza e perturbada serenidade que o caracteriza, uma boa oitava acima destes. (…) Ter conhecido pessoalmente Fernando Aires – com a modéstia, a sua atenção cuidada e doce, a sua camaradagem certa mas não invasora, a sua natural distinção travada de alguma melancolia – foi um dos privilégios da minha vida. Há, nos Açores, — lembrava o autor dePortugaliae Monumenta Frivola aos nossos conterrâneos continentais — muita riqueza assim”.
Por certo que Fernando Aires coraria se tivesse lido estas como muitas outras palavras emEra Uma Vez O Seu tempo. Habituado à secular indiferença indígena, acho que ele escrevia para si e para os seus, quedando-se perplexo pelo entusiasmo e interesse profundo dalguns outros leitores que iam descobrindo as finas páginas dos seus livros. Fernando Aires nunca falava da sua obra, a não ser numa ou noutra entrevista pública, e ainda assim depressa passava das razões da sua escrita aos que na literatura, quer fossem açorianos ou de qualquer outra parte do mundo, o haviam “formado” ou comoviam como só a Grande Arte comove. Citava-me frequentemente, em conversas ocasionais, Camus e Dostoievsky como referências suas incontornáveis (Eça de Queirós, como todos sabem, era a sua suprema paixão literária), o que explicava em parte o seu existencialismo ante o tempo atribulado que lhe foi dado viver e testemunhar – desde uma guerra mundial, mesmo que ao longe, à tardia libertação do seu próprio país muitos anos mais tarde. Verdadeiro aristocrata de espírito, a sua visão da sociedade clamava antes de tudo pela solidariedade sem ostentação hipócrita – como é hábito irreprimível dos políticos medíocres, esses que ele detestava ora com rancor ora com cómico desprezo. É a partir desse posicionamento filosófico que ele também olhava para a Natureza circundante: o seu mundo era irremediavelmente este, a beleza objectiva teria de ser poetizada por cada um de nós, o simbolismo literário de que era outro competente herdeiro açoriano havia de se tornar o espelho primeiro do seu e do estado de alma de quem o lesse. Não admira, pois, que desde um poeta carioca como Sérgio Nazar ou de um romancista gaúcho como Luiz António de Assis Brasil a uma ensaísta como Teresa Martins Marques reconhecessem a sua própria humanidade nas letras e nos gestos criativos do autor da ficção, sempre memorialista dos tempos açorianos, de A Cidade Cercada, com o Diário sempre no centro.
Era Uma Vez O Seu Tempo inclui um álbum fotográfico de amigos e sobretudo dos que ele chamava o seu clã, hoje sob a inspiração da sua esposa e companheira de vida, Idalinda Ruivo, e encerra com um belo texto da sua filha Maria João Ruivo Sousa. Ninguém duvida que a obra de Fernando Aires permaneceria para sempre entre nós com ou sem o presente volume de homenagem. Trata-se, no entanto, de um gesto justo e comemorativo da presença viva para além do túmulo de um grande escritor açoriano. Resta relembrar aqui que o seu contributo intelectual incluiu desde sempre a sua docência a vários níveis, e muito especialmente
a dinamização literária modernista de que foi autor juntamente com outros colegas locais a partir dos anos 40 até aos nossos dias.
__________________
Era Uma Vez O Seu Tempo: Homenagem de Amigos e Admiradores (coordenação de Leonor Simas-Almeida, Maria João Ruivo Sousa e Onésimo Teotónio Almeida), Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2011