A Matéria dos Sonhos de Dora Nunes Gago – Arlinda Mártires
A matéria dos Sonhos é feita de uma tessitura minimalista, à semelhança dos haiku ou haicai japoneses, que são composições poéticas em que a mensagem é reduzida a dois, três ou quatro versos, cinzelados à base de metáforas, nem sempre fáceis de descodificar, a acordar o Simbolismo de Camilo Pessanha (ele próprio, também, “desterrado” em Macau).
No tecer desta poesia, há linhas temáticas que sobressaem (o tempo, a memória, o silêncio, o sonho, a quimera, a ilusão, a espera, o elemento feminino: o ventre, o útero, ou o constrangimento da sua condição de migrante) e que se cruzam no ponto com que entrelaça as palavras. São pertença do universo onírico, onde o seu espírito inquieto busca refúgio, num secretismo apenas dado a conhecer às almas dos poetas.
Nesta poética contida, de impulsos domados ou, no dizer de Eugénio Lisboa (escritor e ensaísta), “de pathos bem amarrado” (“Cavalos de fogo” – II, p.23), o silêncio é presença dominante, metaforizado em “memória do silêncio”; “dedos do silêncio”; socalcos de silêncio”; “rios incandescentes de silêncio”; machado do silêncio”, “a raiz do silêncio”; “de silêncio são os beijos” ou ainda “o nosso reino é feito de silêncio” (no poema “Alentejo” – V, p.70).
Berço de silêncio é a memória que, como diz Schopenhauer “age como a lente de uma câmara escura; reduz todas as coisas e, dessa forma, produz uma imagem bem mais bela do que o original”. E a memória actua como filtro em A matéria dos sonhos, espaço privilegiado pela autora, para onde desloca os anseios, os sentimentos ocultos, lugar de fuga à realidade e à decepção. Veja-se “Grito inacabado” – I, p. 13, ou “Ausência” – I, p.18, ou o poema intitulado “Memória”, ou ainda metáforas como “a brancura pálida da memória”, em “Esfera de luz”, o “eco do tempo sem memória”, em “Murugan”, o “esplendor da memória”, em “Angkor Vat”, “memórias perdidas”, em “Grande Muralha da China”, ou “brancura de memória”, em “Ítacas”.
A contenção dos sentimentos transparece, frequentemente, no adjectivo “esculpido”, muitas vezes associado ao elemento feminino (o ventre, o útero), como quem entalha a emoção e a mergulha no silêncio das águas. Assim é o verso esculpido, como afirma no poema “Matéria dos sonhos” – V, p.71. Em “Murugan”, a “esfinge é esculpida no útero da montanha”, assim como em “Grande Muralha da China”, “as memórias [são] esculpidas no útero da montanha”. No poema “Ilhas”, há uma “sinfonia esculpida”, bem como “Macau” surge “esculpida nos néons da memória”.
O sonho, a quimera, a ilusão trespassam cada verso, onde o desejo se esboroa em “farrapos” ou se afunda “no lodo das esperas”, por exemplo, em “Devaneio Oriental”: “Meu rio de quimeras/de pérolas adiadas/tecidas no lodo das esperas”; em “Macau”: “Minha ilha de quimeras/de pérolas adiadas/no lodo das esperas”. A metáfora do lodo remete para o aprisionamento, para um compasso de espera ligado à lonjura, à dor da ausência e da partida advindas da “Migração” – II, p. 29.
A matéria dos Sonhos substancia a alma inquieta de Dora Gago, na constante busca da identidade pelas “ruas estreitas da [sua] alma”.
Alvito, 1 de julho de 2017.
Arlinda Mártires
(A matéria dos sonhos. Coimbra: Ed. Temas Originais, 2015).
Arlinda Conceição Mártires Nunes fez Pós-graduação em Literaturas e Culturas dos Países Africanos de Expressão Portuguesa (Universidade Nova de Lisboa). Entre algumas das obras publicadas, contam-se Além-Rio (Prémio Nacional de Poesia Raul de Carvalho, 1999), Guynea (poesia, 2004) e Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Dora Gago, 2004); Impressões do Real (poesia, 2015).