A Memória da Água-Viva
Vamberto Freitas
As folhas despegam-se, o papel amarelece, parece ter sido escrita numa velha máquina que à altura já tinha visto melhores dias, reproduzida a stencil, os grampos estão enferrujados e espalham agora a sua corrosão implacável, só tem sete números (mais ‘0’ de lançamento) em formato desigual, existiu apenas dois anos (1978-1980), e não há maneira de eu encontrar espaço certo na estante para as colocar ao alto, páginas compridas, largas e flácidas demais — A Memória da Água-Viva (revista açoriana de cultura). Com tudo isso a seu desfavor nesta sua já longa posteridade, digamos assim, ou exactamente por tudo isso, trata-se de uma das mais originais revistas literárias para certa Geração de Abril nos Açores. As razões são várias, talvez só entendidas agora em retrospectiva. Veja-se, antes de tudo, as datas em causa, e o que corria pelo reino: uma sociedade desestruturada e governada aos solavancos, as ilhas em busca de um lugar na jangada ibérica sempre à deriva, alguns ilhéus expulsos do seu cais atlântico natal. No meio de tal vendaval, em que ficavam as questões da “identidade” e da “cultura”? Foi precisamente esse o espírito de ‘resistência’ de que falavam os poetas em epígrafe aqui. Tudo passa, menos a alma de um povo, essa força interior com que enfrenta ao longo da história as mais inesperadas e por vezes ameaçadoras contingências.
A Memória da Água-Viva nasceu em Lisboa como parte de um projecto cultural integrado do Grupo de Intervenção Cultural Açoriano, por sua vez uma extensão da Cooperativa Semente de Angra do Heroísmo. Do colectivo de estudantes universitários açorianos, e outros, então em Lisboa e arredores, J. H. Santos Barros e Urbano Bettencourt foram encarregados de dirigir e dar corpo ao novo órgão açoriano de cultura. Nas ilhas, debatiam-se todos com tudo, mas a verdade é que toda uma geração culta ligada de um modo ou outro ao nosso arquipélago estava à deriva, tinham-se acabado todas as certezas, o seu espaço de intervenção (tradicionalmente as páginas e suplementos culturais nos nossos jornais) já não existia, ou, pior, o pouco que restava estava condicionado pelos medos políticos daquele momento de transição e grande conflituosidade ideológica na sociedade. No entanto, tratava-se de uma geração que tinha recebido dos seus antecessores uma sólida “formação” na criação literária, a noção da Tradição intelectual que sempre marcou profundamente as ilhas. Nessa altura maioritariamente residente fora das ilhas, no Continente e na Diáspora, ante, como já referi, um aceso debate ideológico essencial mas naturalmente desagregador, o grupo, digamos, lisboeta-açoriano, em gestos localizados através de sessões culturais públicas, edição de alguns livros, e da nova revista desperta toda uma vontade simultaneamente de regeneração e reafirmação do que no seu legado se enquadrava ou deveria enquadrar numa nova definição de açorianidade, literatura e cultura. Na Diáspora, do mesmo modo, nada permanecia como dantes, as comunidades estavam na efervescência criativa em que o 25 de Abril tinha colocado o país de origem. Onésimo T. Almeida já tinha iniciado um debate público através do Portuguese Times, e logo de seguida a fundação de grupos de teatro e intervenções culturais diversas em que se incluíam colóquios e projectos-outros na Brown University. A colaboração com A Memória da Água-Viva começou desde o número ‘0’ de Março de 1978, e a revista, por sua vez, abriu de imediato espaço às questões culturais das nossas comunidades. Acabava de surgir um vivíssimo momento regenerativo da cultura açoriana em todas as suas vertentes, um projecto inclusivista mas de pendor declaradamente à esquerda por oposição a um certo baronato das ilhas que tinha excedido o seu prazo de comando e influência. Pense-se em qualquer nome de escritores açorianos ainda no activo — e aparecem praticamente todos nas suas páginas.
“O facto de a MAV não ser uma revista literária, — escreve Urbano Bettencourt num recente depoimento à então doutoranda Lusa Maria de Melo Ponte, esclarecendo a evolução em dois anos da publicação que dirigia — embora com o tempo esta dimensão tivesse ganhado um relevo maior, à medida que o ‘colectivo’ se foi diluindo e a revista foi dependendo cada vez mais da orientação que o Santos Barros e eu lhe íamos dando; o tom fortemente crítico, agreste mesmo, em relação a aspectos da realidade política e social no interior do arquipélago; a abertura do leque de colaboradores, da geração anterior e da seguinte, alguns dos quais nada tinham a ver com os Açores, ou seja, tornou-se uma espécie de Glacial+, o que possibilitou uma abrangência espacial da cultura açoriana, dando conta, por exemplo, do que se passava nos Estados Unidos da América (embora também fosse um Glacial-, em virtude do relativo afastamento de áreas como as artes plásticas).
Assim entra uma publicação na história da cultura de um povo, assim se cria a miticidade num instante iluminado — o conteúdo quase dá lugar à própria audácia da proposta. A Memória da Água-Viva ficará como esse momento de resistência, mas sobretudo, creio, pela nova teorização das questões fulcrais da cultura e literatura, que estavam submergidas num pântano ideológico e opressivo que se havia sobreposto à criatividade das gerações anteriores, e reclamando para si tanto o direito de redizer o seu passado como de redimensionar o espaço literário que era todo seu. Nasce, pela garra e mente democraticamente esquerdizante da geração que havia sofrido a ditadura, o subdesenvolvimento, a guerra colonial e a emigração, a reivindicação da originalidade da sua literatura adentro dos cânones nacionais, a expressão literatura açoriana renasce agora fora dos contextos supostamente regionalistas ou nacionalistas. Quando alguns acusavam de tudo isto servir interesses anti-patrióticos, esqueciam-se por certo que a teorização de uma cultura literária não pode levar em conta a que conclusões e muito menos propósitos políticos poderão levar outras forças. O facto é que quando uma revista como A Memória da Água-Viva escrevia com todas as letras literatura açoriana, não retirava, nem podia nunca retirar, o direito do seu uso para fins políticos na luta de outros paredes adentro que então se travava, mas alargava o seu significado e introduzia a ambiguidade, ou melhor, a complexidade essencial a qualquer noção de literatura e a sua génese, à análise das suas temáticas, aos formalismos que havia desenvolvido no cultivo da sua originalidade. Poucos serão os países que não albergam dentro de si a diversidade literária conforme a região e a história que conduziram os seus destinos.
O número seis da MAV (8 Maio de 1980) dá um outro e medonho sinal do seu tempo: vem preenchido quase só com um extenso trabalho intitulado “Apontamentos Para O Estudo Das Crises Sísmicas Nos Açores”, de A. Vieira. Angra estava destroçada, novas incertezas e inseguranças tinham surgido nos Açores. Os seus directores, que desde sempre acreditavam que a intervenção da revista deveria acontecer dentro do arquipélago, anunciam a sua transferência para Ponta Delgada sob uma nova direcção. O número seguinte foi de imediato “modernizado” — e morreu de seguida.
Entretanto, e como nos lembra Urbano Bettencourt no depoimento já aqui referido, o Grupo de Intervenção Cultural Açoriano, em Lisboa, traria outros contributos com a publicação de livros na sua colecção Garajau: 20 anos de literatura e arte nos Açores e A humidade (ambos de 1977) de J. H. Santos Barros, S. Jorge-ciclo da Esmeralda (1977), de Carlos Faria, Terra-mote ou a destruição dos búzios (1980),
de Emanuel Jorge Botelho, e Marinheiro com residência fixa (1980), de Urbano Bettencourt. O seu legado literário entre nós é, pois, riquíssimo e duradouro.
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A Memória da Água-Viva: revista açoriana de cultura, Lisboa — Ponta Delgada, 1978-1980.
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Comunidades
25 abr, 2011, 05:53
A Memória da Água-Viva *** Vamberto Freitas
…O espírito de ‘resistência’, timbre das últimas gerações que nos Açores se empenharam na construção dum espaço cultural novo, aberto, progressivo, e na sua defesa.
J. H. Santos Barros e Urbano Bettencourt num dos editoriais d’A Memória da Água-Viva