Adelardo estava grande e podia decidir sua vida. Tomou a parte dos bens que lhe cabia e, fugindo com uma catarina dos da beira do rio, foi morar muito longe, para nunca mais se envergonhar de tudo o que acontecera. Bêbado, se queixar em noite de muito luar: "Tão certo como esta lua que nos alumia: aquele menorzinho é filho do meu irmão. Eu vou embora e nunca mais quero ver ninguém da raça". Depois a raiva passou e ele veio visitar o irmão, deu a bênção aos irmãos que eram seus irmãos e aos irmãos que eram seus sobrinhos, confundiu-se um pouco e cumprimentou a mãe e a cunhada, abraçou o irmão e o pai, mas todas eram pessoas muito parecidas e na tarde do primeiro domingo da visita de três dias já brincava com o irmão sobre a misturança que havia resultado daquele casamento que fora tão falado.
Mas o povo não perdoava. Muitas pragas eram rogadas em época de safra ruim. Sobreveio uma grande seca. Dona Mosa mandou, ao final de muitos esforços inúteis, que amarrassem São Sebastião pelo pescoço e o enfiassem no fundo de um rio, para que ele fizesse chover. Era o último recurso. Não deu certo. Então ela desfez aquele tremendo segredo, que guardava com cobertas de muito medo. A seca era um castigo de Deus, que não gostara daquele casamento malfeito. Era preciso desagravar o coração sagrado de Jesus. Ela mesmo encarregou-se do benefício. Mandou uns da bodega achar um sapo rajado, pediu para o bodegueiro escrever o nome dos dois em papel de embrulho, mandou que Assunta costurasse, por cima dos nomes, um retalho preto de fazenda com linha vermelha, deixando, porém, a agulha cruzada com outra no pedaço de pano, juntou tudo a um patuá, colocou dentro de um saquinho de bala azedinha, enfiou dentro da boca do sapo rajado e mandou costurar. Artidor, o bodegueiro, foi quem costurou, outros cavaram um buraco enorme na roça que ficava na extrema da terra de Rufino e ali enterraram aquele sapo. "Enquanto o sapo sofrer, eles também vão sofrer", disse dona Mosa. "E enquanto o nome deles durar na boca do sapo, tem que cair a chuva do céu".
A chuva caiu ao final de quarenta dias consecutivos de uma doída seca. Na roça onde haviam plantado o sapo, o milho de Rufino cresceu verduroso e cheio de muitas bonecas louras, que logo viraram espigas, que granaram depressa. E deu milho como nunca antes tinha dado. E Rufino ficou ainda mais rico. Comprou um automóvel, o primeiro do lugar – coisa que ninguém nunca pensara em trazer para aquelas estradas. Como Rufino tinha automóvel e muitos produtos, a estrada foi melhorada e, com isso, o prefeito se reelegeu, pois tinha muito voto naquele costão.
Dona Mosa justificou-se: "O pequeno tem nome de santo antigo. Tudo dá certo pra eles".
E eles foram embora. Rufino, que aprendera desde muito pequeno a dar ouvidos à voz de dona Aparecida, não suportava mais os discursos de um tal de Hélio, quando este ficava bêbado: "É um escândalo, é um escândalo. Em nossa comunidade um filho tem cria com a mãe e não diz nada, fica aí de impostor a debochar de todos nós. Assim não é mais possível um cristão viver em paz com sua consciência". E muito mais pesadas palavras proferia Hélio quando estava tomado pela cachaça.
Dona Aparecida então entrou em si e meditou, dizendo: "Vamos para Curitiba. Esse dinheiro que está a juro na mão de todos, aí espalhado, a gente ajunta, põe no banco, você arruma um trabalho qualquer, eu sei fazer roscas de polvilho, pão de toda espécie. Lá esses dois podem estudar".
Rufino comprou um armazém bem fraquinho. Hoje não precisa mais ficar atrás do balcão. Deu a venda para os irmãos-seus-irmãos e para os irmãos-seus-filhos. Uns estão estudando para médico, outros para engenheiro. Os pequenos, quando crescerem, querem ser homens importantes, como Fittipaldi, Pelé, que tem muitas bicicletas, Tarcísio Meira ou generais. Tem uma menina louríssima que quer ser atriz de telenovela. Dona Aparecida olha para Rufino e sorri satisfeita:
– Lá onde a gente morava, ela nunca ia querer ser isso.
Rufino dá uma demorada tragada no cachimbo e comenta com certa preguiça:
– Lá onde a gente morava, lá onde a gente morava… Lá onde a gente morava era um lugar cheio de muita confusão.
A empregada chama para o jantar. Dona Aparecida, à cabeceira da mesa, convida todos a rezar: "Abençoai, Senhor, as nossas pessoas e o alimento que agora vamos tomar, que Vossa justiça nos sirva para conquistar a liberdade aqui na Terra e merecer na outra vida o Céu. Amém".
Na mesa, Rufino pergunta: "Cidá, você já ouviu alguma vez alguém falar em mesa dos inocentes?" "Não", diz dona Aparecida. "É um costume de debaixo da serra", diz Rufino. "Quando alguém faz um pecado que acha muito feio, para desagravar, convida todas as crianças com menos de sete anos de idade que moram no lugar, faz uma festa, arruma uma mesa com muitas comidas, e então Deus perdoa, porque quer bem aos pequenininhos. Vamos fazer uma dessas um dia?"
Refer.Bibliográfica: Conto A Mesa dos Inocentes, In: A Mesa dos Inocentes,Ed.Artenova,Rio de janeiro,1978