A MONTANHA MÁGICA
Não é um navio qualquer. Os navios de verdade são brancos com chaminés azuis e amarelas. Pintado de negro, o bojo dos seus cascos dá-nos a ilusão de que essa cor confere uma maior solidez à quilha. Obviamente, também a proa do navio do Pico é mais alta do que a ré; os seus relevos e labirintos internos resultam de formas miudamente estudadas: linhas puxadas de um tombadilho para outro, talvez intuídas pela imaginação do viajante logo à chegada, ou então já previamente desenhadas sobre o estirador pela mão do seu arquitecto.
Diz-se que se pode construir grandes e inefáveis navios dentro das cidades, como deixou provado um escritor grego, o senhor André Kedros. Considerada na sua totalidade, a amurada desses metafóricos navios imaginários lembra a arquitectura das cidades medievais, com peitoris de madeira e colunelas que mais parecem varas de adorno do que base e sustento dos alpendres e das suas cobertas. Nos navios verdadeiros, as escaleiras parecem incrustações carnais na própria carne do navio, tal como os seus corrimãos ardidos pelo salitre do mar, as vigias circulares como os olhos dos peixe, os salva-vidas, as bóias suspensas dos ganchos na amurada do convés.
Mas com o mágico e maravilhoso navio do Pico é diferente. Primeiro do que tudo, é algo de tão absurdo que nunca ninguém viu nele a forma nem o perfil dos barcos; segundo, não é certo que ali esteja ancorado, nem se prova que vá ou pretenda pôr-se em movimento. De náutico, tem ele os inequívocos portalós: um varandim quase ininterrupto de miradouros costeiros, de onde claramente se avistam outros navios presos ao encanto do mar do Canal, e suponho que nele postos não em viagem, mas como se em formação de combate: Faial e São Jorge a estibordo e, atrás deste, em viagem para sítio nenhum, a solitária e maneirinha Graciosa. Das alturas do Pico, vê-se também uma sombra chamada Terceira: bruma e nuvem de um navio fantasma que parece andar sempre ao redor, numa deriva, circulando não à superfície mas nas profundezas do mar. A bombordo do Pico, nenhuma outra ilha à vista, só o mar dos Açores. Um mar imoderado, sempre entre cavado e grosso. Branco e azul.
Famílias de cetáceos brincam durante horas e horas seguidas, nesse gordo, quente, generoso mar do Pico: o mar das baleias mais divertidas do mundo. Brincam rondando primeiro as vagas e só depois os olhos dos homens, antes de se fazerem de novo ao alto sem nunca nos acenarem com um gesto de adeus nem se voltarem uma única vez para trás. Não sabem quem mo disse? Um escritor italiano, o senhor Antonio Tabucchi, que um dia me levou à presença de uma mulher que detém no olhar os profundos e altivos segredos do mar – velha senhora sentada à porta da sua casa, em Porto Pim. A senhora da praia e das horas do mar.
Quando estamos no Pico e olhamos o cume da montanha, não é preciso sentir nada, nem assumir ou invocar o que do Pico sabíamos antes de aqui virmos para o conhecer melhor. Bastará ver e escutar, e depois expormo-nos por completo à razão sentimental das nossas paixões. Tudo o que há a escrever sobre o Pico está nele patente e dito por escrito; paira no ar como algo que falta captar e que nunca ninguém há-de lograr dizer ou escrever: uma intimidade exposta, uma evidência oculta que nem os estranhos, nem mesmo os seus naturais, alguma vez conseguirão revelar.
Porque o Pico não existe na nossa realidade; é-nos metafísico ou ontológico. A sua montanha vai e volta, levada e trazida sobre um andor de nuvens, como num quadro do pintor açoriano Carlos Carreiro. As ilhas que lhe ficam em frente, pela mesma: estão lá paradas, sustidas pelo mar, mas como se envoltas na sublimidade da distância e das brumas que vogam à bolina dos ventos e das vagas do tempo que grassa no Canal. Longe e ainda mais encobertas, a Terceira e a Graciosa giram à luz do mesmo feitiço, do qual o mar é talvez o único grande decifrador.
( João de Melo in “AÇORES O Segredo das Ilhas”)
João de Melo
Um dos grandes nomes da literatura portuguesa contemporânea é açoriano,nascido na freguesia da Achadinha,Concelho do Nordeste(1949),Ilha de São Miguel. Destaca-se como ficcionista, ensaísta,investigador, crítico literário,poeta e cronista. Conselheiro dos Assuntos Culturais na Embaixada de Portugal em Madrid (2001-2010).
João de Melo iniciou a sua vida literária, em 1975, com o livro Histórias da Resistência.O romance Gente feliz com Lágrimas o consagrou tendo recebido inúmeras premiações: “Grande Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores”, “Prémio Eça de Queirós da Cidade de Lisboa”, “Prémio Cristóbal Colón das Cidades Capitais Ibero-Americanas”, “Prémio Fernando Namora” e “Prémio Antena 1 de Literatura” para o melhor livro do ano. Gente Feliz com Lágrimas, foi adaptado ao teatro, à televisão e ao cinema. Está traduzido na Espanha, França, Itália, Alemanha, Holanda, Bélgica, Estados Unidos, Áustria, Roménia e Bulgária.
Produção Literária mais recente: O Segredo das Ilhas (2000, viagens), Antologia do Conto Português (2002), As Coisas da Alma (conto, 2003), Uma antologia de dezoito dos seus contos foi publicada em Espanha com o título de Crónica del principio y del agua y otros relatos (2005). Mar de Madrid (romance, 2006) e ainda: A Nuvem no Olhar (antologia pessoal) e O Vinho,2008 (com desenhos de Paula Rego). A Divina Miséria,2009. Apresentada em Madrid a edição espanhola de “Autópsia de um mar de ruínas” em Outubro de 2011.
Literatura infanto-juvenil: Carta a El-Rei Dom Manuel Sobre o Achamento do Brasil, adaptada para os mais novos (ilustrações de Carla Nazareth, 2009).