A Mosca Iluminada de Natália Correia
por Leocádia Regalo (*)
Quem não conhece o verso de Natália Correia a poesia é para comer? Como pedra no charco, assim termina o poema “A Defesa do Poeta”, inserido n’ A Mosca Iluminada, publicada em 1972, como mais uma obra poética que haveria de consolidar o percurso marcante que a escritora açoriana vinha trilhando no nosso panorama literário. Detentora de uma voz assumidamente libertária e arrojada, nesta colectânea, constituída por duas partes – Fragmentos de um Itinerário e As Aparições -, Natália Correia reúne um conjunto de poemas e de prosa poética, em que explode o paraíso perdido da infância, essa Ilha onde nasceu e viveu até aos onze anos, mítica e telúrica, identificada com a Mãe: perder a mãe é dispor de uma ilha, um ramo de incendiadas hortênsias, dando por todos os lados para o indizível e ter uma ilha é possuir um objecto imaculado pela distância. A Mosca Iluminada não se poupa a incursões pelo mundo social, pessoal e íntimo, numa visão demiúrgica dessa maga sibilina e contestatária, fascinada pelo universo onírico do surrealismo, que consagra o seu trajecto existencial ao conhecimento das coisas, da sua circunstância e das palavras que as hão-de nomear. Sendo talvez a obra mais açoriana de Natália,Numa época profundamente marcada por um regime conservador que retirava às cidadãs o direito de voto, Natália Correia revelou-se a mulher mais iconoclasta de Lisboa, como era qualificada pelos seus contemporâneos, ousada e intrinsecamente criadora de uma modernidade estética que vai beber à fonte inesgotável do romantismo. Questionando instituições ancestrais, como a família, o casamento, a conjugalidade, a política, e pondo em causa conceitos adulterados pela hipocrisia (a felicidade, a alegria, a entreajuda ), grita contra a guerra colonial, masculina preferência da morte que a inteligência das minhas mamas ofende. É neste contexto que a sua escrita se afirma desassombrada e galvanizante, conjugando imaginação, memória e amor para construir os alicerces de uma poesia que se suporta no fulgor de uma vida assumidamente autêntica na sua complexidade.
Com o Romance da Paloma, belo poema autobiográfico, ao gosto do romanceiro, tão cultivado pelos escritores românticos, a poeta encerra esta obra, deixando nos nossos ouvidos aquele refrão tão musical: Ai Paloma ai Palominha / mal soubeste Palomar.
Natália Correia
A Mosca Iluminada
Lisboa: Quadrante
(*) Nota: Leocádia Regalo É Natural de Norte Pequeno, Ilha de S. Jorge, 1950.
Escritora açoriana a viver desde os dezanove anos em Coimbra, tem desenvolvido a sua atividade cultural como docente, crítica literária e tradutora.
É na poesia que se afirma na criação literária, tendo publicado Pela Voz de Calipso, um retorno às suas raízes presas às Ilhas, nomeadamente S. Jorge, berço natal, e Terceira, onde viveu a infância e juventude em Angra do Heroísmo.
Seguem-se os livros Sob a Égide da Lua, Passados os Rigores da Invernia e mais recentemente Tons do Sul.