A Mulher que Venceu Don Juan,
de Teresa Martins Marques
O romance A Mulher que Venceu Don Juan, de Teresa Martins Marques, possui um tão forte dinamismo na acção que cria em nós leitores uma curiosidade crescente à medida que a trama se vai desenvolvendo. Todavia, esse nosso desejo é coarctado pelas constantes pausas na evolução da intriga e pelas investidas de um narrador erudito que nos presenteia com um manancial de informação de pendor didáctico e de intenção pedagógica. São vários os pretextos que sustentam esta intenção, mas ressalta-se o das viagens e deambulações e que privilegiam espaços como Lisboa, Tavira, Porto, Vila Real, Torre de Moncorvo. Nestas viagens e deambulações realizadas por Sara, personagem cuja vida esteve fechada num parêntesis de anestesia e que precisa de aproveitar o tempo perdido e de exorcizar os seus males (e neste sentido as viagens podem aqui ter um alcance de peregrinação) reflecte-se muito sobre a cultura do nosso povo, revisita-se e reinvoca-se o passado através da história de monumentos ou de edifícios de interesse público, tais como, a Fortaleza da Torre Velha (de Caparica), a Igreja da Misericórdia de Tavira, a Igreja Matriz de Moncorvo ou o Café Majestic, relembram-se tradições e costumes. Mas este narrador, omnisciente ou investido na pele de alguma das personagens, não se fica por aqui na prestimosa oferta de informação: ele discorre eruditamente e com comprazimento sobre temas literários, com abundância de referências e citações de autores, sobre filosofia, psicologia, cultura, enfim. Desde notas biográficas sobre D. Francisco Manuel de Melo até explanações sobre intervenientes na guerra civil de Espanha, passando sobre excursos desenvolvidos sobre Kierkegaard em Diário de um Sedutor, ou sobre as diversas figurações donjuanescas ou ainda sobre os malefícios de um envolvimento obsidiante em qualquer tese de doutoramento, o leitor confronta-se nesta obra com um deleitoso manual de cultura.
Da temática da obra releva-se o tema fulcral, que é o donjuanismo, nas suas múltiplas representações, no masculino e no feminino. Derivados deste tema achamos outros, como o da violência física e /ou psicológica, o masoquismo e o medo. Um outro tema também abordado e que tem uma particular importância nas sociedades actuais é o da tirania exercida pelos filhos sobre os seus progenitores e a morte de um conjunto de valores antigos em que prevalecia um distanciamento reverente entre a geração mais nova e a mais velha, com os malefícios que tal pode aportar.
Toda a narrativa assenta num dualismo: eixo do bem versus eixo do mal. Esta visão é-nos transmitida não só através das personagens, que numa estrutura actancial se designariam por adjuvantes e oponentes, mas também pelos juízos críticos do narrador, favoráveis e elogiosos (em geral) para uma banda e depreciativos para a outra. Sendo certo que a bondade e a perversidade podem habitar o mesmo sujeito (real), esta dualidade, apenas esbatida pontualmente (por exemplo na personagem Manaças, que apesar de portador de um sem número de defeitos possuía a virtude de amar a mãe), poderá parecer exagerada, mas ela faz parte de uma intenção autoral, pedagógica ou outra, cabendo aos sucessivos leitores o seu desvendamento.
O tema do donjuanismo, que no fundo é uma das múltiplas expressões do mal, envolve activamente as personagens Amaro, Lúcia, Sara, Luís, Joana e Manaças, é largamente teorizado e explicitado pela personagem Manuela, pois a sua tese de doutoramento incidiu sobre SØren Kierkegaard: “Retórica Amorosa de Don Juan: Sombras de Sedução”. Amaro, o Don Juan masculino, é uma verdadeira alegoria do mal. Ele encarna o pior dos modelos de Don Juan a que se junta uma enorme dose de psicopatia consubstanciada nos vários crimes que cometeu. Socialmente é reificado porque ele personifica a contradição entre o parecer e o ser. Pisou uma linha vermelha e perdeu o controlo da situação. É uma personagem de cariz trágico, tal como Joana – o modelo de Don Juan no feminino. Outra personagem do eixo do mal é Manaças que acaba vitimado. Sara e Luís são apresentados ao leitor no início da narrativa como personalidades enfraquecidas pelo torpor venenoso da aranha masoquista que a perversidade dos respectivos companheiros criou neles. Conseguem, porém, com a adjuvância da “deusa-mãe” Lúcia, perder o medo e desintoxicar-se do masoquismo. São personagens que têm uma grande evolução psicológica. Lúcia, que como já se referiu, cobre com o seu manto protector as vítimas do mal, experienciou ela própria o aviltamento de Amaro. Sabemo-lo através de analepse, já em fase adiantada da narrativa. Direccionou a sua existência, paralelamente com o seu crescimento intelectual e profissional, para objectivos de cariz humanitário e focalizou, ocultamente, especial atenção nas manobras maquiavélicas de Amaro, prevendo e evitando a pior das tragédias. Verte na sobrinha, Manuela, o sentimento maternal que a filha, Joana rejeita por ser narcisista, complexada e prepotente. Na luta contra o “canibalismo” que a filha lhe fazia prevaleceu a sua auto-estima é, por isso, uma personagem paradigmática.
O efeito de real assume nesta obra uma particular importância. A diegese está muito alicerçada no real. O reconhecimento por parte dos leitores de referentes empíricos espaciais, nos quais tropeça a cada passo na narrativa, são-lhe familiares e podem despertar-lhe múltiplas sensações e emoções. O mesmo se pode dizer para os referentes indivíduos, como por exemplo, as reiteradas referências ao panteão docente da Faculdade de Letras de Lisboa. Estes efeitos de real, se por um lado prefiguram uma intenção da autora de exaltação de espaços, ambientes e indivíduos que lhe merecem simpatia, estima ou admiração, imortalizando-os através da escrita, num grandioso fresco da narrativa, por outro, prendem-se com a ideologia da mesma autora, que criando verosimilhança, aspira a mais facilmente fazer passar a sua mensagem de denúncia do mal – o donjuanismo e seus satélites – e de fazer a apologia do bem, ainda que para este ser alcançável haja que se passar por um processo alquímico de expurgação. A contaminação entre o real empírico e a ficção é notória em toda a obra, como se referiu, mas como seria se personagens desta ficção invadissem, por exemplo, registos factuais (ou não?) como a história amorosa de D. Francisco Manuel de Melo?
A intriga, tem o seu clímax na cena luxuriosa em casa de Amaro e em que os requintes de perversidade deste vão ao cúmulo de violar o próprio filho, o Manaças, e é, como já se referiu, emocionante. Ter-se-á inspirado nos cânones do folhetim em moda no séc. XIX, “pingados a conta-gotas” na imprensa escrita e deixando os leitores em suspenso até à publicação seguinte. O modelo continua a fazer sucesso hodiernamente através do “famigerado” facebook , criatividade que cumpre homenagear.
Realça-se ainda o levantar de duas grandes questões ontológicas e que são, a imutabilidade da natureza humana e a origem da maldade, genética ou não, as quais, não sendo profusamente desenvolvidas, deixam na mente do leitor o vírus da reflexão, o qual anda às vezes tão arredado da sua zona de conforto.
O léxico é de um modo geral muito cuidado, virtuoso mesmo, alternando com linguagem coloquial sem excessos, mas adequada a algumas personagens e situações. De referir também alguns regionalismos e arcaísmos que poderão surpreender o leitor mais cosmopolita e menos familiarizado com eles, como “figurão de alto coturno”, “Joãozinho de pacotilha”, “um azougue”. Da linguagem metafórica realça-se a beleza da imagística “A jovem mulher começava a deitar raízes na sua vida”, “deram ordem de despejo ao amor dos pais”, “empequenecer&helli
p;”.
Muito falta dizer sobre a obra em apreço. Aqui ficam registados apenas alguns dos muitos pontos de interesse pois a exaustão nunca poderia figurar nos propósitos desta exposição. Muito mais se discorrerá e escreverá ainda sobre a obra, augura-se, o que consolidará o seu indubitável valor literário.
Para finalizar deseja-se salientar o grande prazer resultante da leitura deste romance, A Mulher que Venceu Don Juan, de Teresa Martins Marques, (estreia auspiciosa da autora no género) na sua dupla função lúdica e pedagógica e que é integralmente cumprida. Termina-se citando, a propósito, Lêdo Ivo “A leitura há-de ser sempre uma ética. Incumbe-lhe ensinar o homem a respirar o universo” .
Maria Carlos Lino de Sena Aldeia
Nota curricular:
Maria Carlos Lino Gonçalves de Sena Aldeia
Nascida a 22 de Maio de 1948
Natural de Luanda – Angola
Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, Variante de Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Frequentou vários cursos como o de “História da Colonização Portuguesa no Brasil”, na Universidade Aberta; o curso de Cultura Portuguesa na Escola Superior de Educação Almeida Garrett e outros cursos e seminários na Faculdade de Letras de Lisboa no âmbito da Literatura, da Cultura ou da Filosofia.
Leccionou Francês na Junta de Freguesia de S. Domingos de Benfica.
Escreve ocasionalmente artigos sobre Literatura no Jornal As Artes Entre As Letras, do Porto.
Colabora em acções de carácter cultural com a ANAC- Associação Nacional de Aposentados da Caixa Geral de Depósitos e com a Associação dos Antigos Alunos do Ensino Secundário de Cabo Verde.
É aposentada da Administração Pública, tendo exercido o cargo de Chefe de Divisão, no Ministério das Finanças. Exerceu funções de chefia na área da biblioteca e da formação profissional e técnicas na área da gestão de imóveis do Estado.