A outra Maria do Dante
Tratar o assunto “meretrício” com um mínimo de elegância literária não é tarefa para qualquer um. Fáceis são o humor grosseiro e escrachado, a sátira explicitamente pornográfica, o florilégio de piadas vulgares. Não é essa coletânea de mau gosto que vamos encontrar em “Maria Batalhão – Memórias Póstumas de uma Cafetina”, o mais recente livro de Dante Mendonça.
Sendo o autor jornalista, o viés profissional também não marca a obra como uma simples reportagem sobre os bordéis e o que seria pertinente denominar como a “cultura erótica extra-conjugal do passado curitibano”. Seria lamentável, mesmo, se os leitores se defrontassem simplesmente com uma colcha de retalhos, um “patchwork” de textos e depoimentos sobre um assunto que – diante da liberdade sexual de nossos dias – vai começando a ganhar conotação de anacronismo histórico, ainda que continue a permear, num sentido mais amplo, todos os desvãos da sociedade contemporânea.
Dante – fazendo jus ao nome – construiu engenhosamente um texto multifacetado, captando o paraíso, o purgatório e o inferno da vida da cafetina, não necessariamente nessa ordem, pois os círculos das esferas paradisíaca, purgativa e infernal não podem ser bem demarcados e sequenciais numa obra que trata das agitadas e tumultuadas peripécias da “vida fácil”.
O início de “Maria Batalhão” é um primor de criatividade e engenharia textual, pois Dante toma como ponto de partida o personagem “Dr. Bogoloff”, daquele que é um dos nomes mais notáveis da literatura brasileira, o genial Lima Barreto. E assim vai se iniciando a narrativa, num certo clima de sátira e non-sense de tom também “oswaldiano” (de Oswald de Andrade), nos apresentando Maria, que Dante faz nascer na mesma cidadezinha ucraniana onde veio à luz outro nome exponencial de nossas letras: Clarice Lispector. Nas garras do “Zwi Migdal”, a célebre quadrilha internacional de promoção do lenocínio organizada por judeus, a mocinha ucraniana acaba vindo Brasil, onde, tendo em vista sua origem, é encaminhada pelas autoridades da imigração à mais ucraniana das cidades paranaenses, Prudentópolis. Depois de alguns anos na roça, com muitas vicissitudes, parte para Curitiba, onde seu destino é uma casa de “comércio carnal” nas proximidades do quartel da Praça Rui Barbosa (hoje Rua da Cidadania).
A partir daí, enriquecendo o trabalho com muitos dados e referências à história e geografia da cidade, vai Dante traçando o “mapa” de nosso meretrício e, ao mesmo tempo, apresentando uma “radiografia” realista de uma sociedade que necessita canalizar os impulsos do baixo ventre para o desafogo no sexo pago. Maria se torna, assim, a “rainha dos prazeres da carne” para paisanos e milicos, para os poderosos e nem tanto, para todos os detentores do suficiente para pagar por alguns momentos de prazer.
O “Batalhão” da “Maria” decorre tanto do fato de seu prostíbulo usufruir de “bons negócios” na proximidade da caserna, como do número avantajado e variedade dos clientes atendidos: políticos, empresários, militares, etc. Constantes são as referências a Dalton Trevisan, com a inserção de vários fragmentos de textos do “vampiro”. A segunda metade do livro é um panorama jornalístico das mais célebres casas de prostituição de Curitiba, intercalado com uma sátira impiedosa do personagem “Picasso”, em parte baseada em figura e fatos reais. Nessa e em outras sátiras, o autor revela todo o vigor de seu humorismo…e rindo castiga os costumes… (a frase em latim não vou citar, pois já virou lugar comum e pode ser interpretada como pedantismo).
O máximo da sofisticação é atingido quando Dante leva Maria Batalhão a Paris, para ali terminar seus dias. O estratagema é engenhoso e permite mais informações sobre a Cidade-Luz, um dos amores do autor. Sinceramente, só faço restrições à contundente frase final do livro: humor negro não vale como epílogo. E assim, com esse minúsculo senão, a obra se insere no “batalhão” dos interessantes livros do Dante: “Álbum de Figurinhas & Figurões; Botecário – Dicionário internacional de botecos; Piadas de sacanear atleticano e coxa branca; Piadas de sacanear vascaíno e flamenguista; A Banda Polaca – Humor do imigrante no Brasil Meridional; Curitiba: Melhores Defeitos e Piores Qualidades; e Serra Abaixo Serra Acima – O Paraná de trás pra frente”.
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Sobre o Autor:Hélio Puglielli,
Escritor,jornalista e Ex-Professor da UFPR e da PUCPR e ex-editorialista dos jornais curitibanos O Estado do Paraná, Indústria & Comércio e Gazeta do Povo. Poeta. Da sua obra destaca-se Para Compreender o Paraná, (Secretaria da Cultura do Paraná), onde dá sua contribuição de crítico, com a visão de jornalista que nunca abandonou a profissão. Ao deixar o compromisso diário com o jornal, não deixou, porém, de escrever. Selecionou 93 textos curtos em sua forma, mas profundos em seu conteúdo – nos quais analisa desde o linguajar paranaense, como faz perfis de personalidades como Bento Munhoz, David Carneiro, Erasmo Pilotto, Ernani Reichman, Sérgio Sossella, Emiliano Perneta, Wilson Martins, Paulo Leminski, Plácido e Silva, Colombo de Souza, Samuel Guimarães da Costa, entre outros. Despretenciosamente, Para Compreender o Paraná, é um dos mais importantes volumes já editados, pois, numa forma rápida, simples e jornalística, mostra “Bichos do Paraná” que merecem – e devem – ser melhor estudados e, logicamente, admirados.