O “Jornal da Festa do Livro dos Açores” convidou quase duas dezenas de autores açorianos – de diferentes vocações, gerações, projeções e localizações (São Miguel, Terceira e Faial, Lisboa, Boston e Florianópolis – para um painel de emoções sobre a nossa comum “Paixão pelos Livros”:
Carlos Bessa, Emanuel Jorge Botelho, João de Melo, João Pedro Porto, Lélia Pereira Nunes, Leonor Sampaio da Silva, Luiz Fagundes Duarte, Madalena San-Bento, Nuno Costa Santos, Onésimo Teotónio de Almeida, Paula de Sousa Lima, Santos Narciso, Urbano Bettencourt, Vamberto Freitas, Victor Hugo Forjaz e Victor Rui Dores.
Foram desafiados a escrever um testemunho pessoal de dois parágrafos, num exercício de criatividade (que todos tiveram) e de síntese (que poucos cumpriram). E aceitaram o desafio.
Vale a pena ler…
João de Melo
O livro é o prazer e o jogo das emoções pela leitura.Ele educa: abre nos olhos do leitor não apenas um horizonte cultural, mas o sentido crítico da sociedade, do tempo e da vida. Os jovens deviam saber que a cultura do livro é um meio de defesa,
e não uma exigência da escolaridade: se um dia forem grandes leitores, serão homens e mulheres mais competentes, menos explorados em sociedade e mais livres, porque menos dependentes dos outros; terão uma maior visão crítica do mundo:
sendo mais sábios, estarão mais defendidos e bem informados. Cada século tem os seus livros (os chamados «livros do século»). Cem Anos de Solidão, romance de Gabriel García Márquez, é uma obra-prima, um livro de leitura tão avassaladora como um
terramoto de grande intensidade. Não foi só a sua narrativa exuberante que infundiu em mim a descoberta de uma nova realidade literária sobre o mundo; foi a surpresa de ver que esse romance podia comportar outros domínios do imaginário.
E verificar o evidente paralelismo de Macondo com a aldeia açoriana da minha infância. Gabriel García Márquez conta uma história em tudo parecida com as da minha avó, narradora tão perfeita quanto impiedosa nos seus ritos narrativos.
A voz dela produzia em mim todas as emoções,todos os momentos de pausa interior, numa técnica transida de “suspense”. O genial Gabriel García Márquez roubou-me este livro: devia ter sido eu a escrevê-lo.
e a pena ler…
Lélia Pereira Nunes
Uma declaração de amor ao Livro. Faço com prazer e proclamo sem qualquer pudor: incontáveis
as madrugadas e manhãs que eu acordo abraçada em ti. Bem juntinho, sentindo teu corpo firme,
tua maciez e teu cheiro inconfundível. Contigo não existe solidão. Apenas um mundo imenso a
desvendar vida. A vida que se alonga e que fazes vibrar em infinito dentro de mim.
Impossível citar um livro. A infidelidade é absoluta. São tantos! Livros que chegam e ficam. Não
partem jamais.
Por isso, não faço declaração de preferência. Quero lembrar os 50 anos de “Cem Anos de Solidão” do colombiano Gabriel Garcia
Márquez, o autor que mudou o rumo da literatura moderna na América Latina. Um livro onde a ficção e os absurdos da realidade latino-americana
se encontram e se cruzam no tempo e no espaço. O realismo mágico e histórico de “Cem Anos de Solidão” marcou toda uma geração.
Nuno Costa Santos
Com os livros podemos e devemos ser infiéis. Podemos saltar de um livro para outro sem que haja ofensas e ressentimentos pelo meio. Haverá
livros decisivos e canónicos na vida de uma pessoa,mas existem sempre outros que, se não foram determinantes, tiveram o seu papel em certo momento.
Portanto, se há uma declaração de amor a fazer, é uma declaração aos livros, aos que nos confrontaram com os nossos medos, aos que nos
fizeram rir enquanto os líamos numa esplanada,aos que foram uma recomendação de um amigo, aquele que diz: “Tens de o ler. Este livro é a tua cara!”.
Falando em amigos, tiro da estante o livro “Mesa de Amigos”, com versões de poesia por Pedro da Silveira, em edição da Assírio & Alvim, de 2002.
Escolho-o não só por trazer versões de bons poemas escritos por vozes de nacionalidades muito distintas, mas porque o título é todo um programa
– e só de o pronunciar sinto-me bem, apaziguado. Imagino um grupo de cúmplices à volta da mais essencial e íntima das superfícies. E esses amigos
podem ser livros, espalhados, desordenados, em montinhos que juntam géneros diferentes, autores distantes. Ficam à conversa, aqui à minha
frente. E continuam, quando me vou deitar.
Paula de Sousa Lima
Só um livro guarda com correção o rumor das ondas a debruçarem-se sobre a areia e a fulgência
do sol a espraiar-se em inteireza sobre a terra. Só um livro guarda a ternura do sorriso completo de
uma criança feliz. Por isso, amo os livros como amo a natureza e as crianças.
E porque há livros me permitem deixar de ser “um bicho da terra tão pequeno”, homenageio Os Lusíadas.