– palmada amigável nas costas do passado
Até meados do século passado, as tabernas, as barbearias, os fontenários eram os entrepostos populares preferidos para distrair a pobreza. Refiro-me à realidade micaelense onde a maioria da população rural desconfia da alegria. Entretanto o tempo não muda as coisas mas muda-lhes o nome: as “discotecas-bar” já não cheiram a vinho. Os aromas estão mudados!
Antigamente, nas tabernas, avinhar a alegria rimava com a “dor de ser quase“: o que vale a pena quando a miséria não é pequena…?
Até meados do século passado, freguesia sem tabernas era como igreja sem altares. As tabernas eram geralmente os “confessionários” populares onde o “pecado” se sentia à vontade; por vezes, eram “capelas castiças ” para celebrar a ceia da fraternidade rural, onde o vinho-de-cheiro era o mágico denominador comum da camaradagem.
Naquele tempo, o taberneiro era o confessor distraído daquelas “almas” que não tinham ninguém para desabafar mágoas; e era o “ouvidor” ocasional das mais disparatadas mentiras misturadas com os mais pungentes segredos. Para os zelosos convertidos à religião do “copo”, entrar numa taberna é como visitar uma “capela” para conversar com a santa “pinga”de serviço – – o pior é quando a “oração” demorava mais do que o previsto: alguns dos fiéis depressa ficavam incapazes de finalizar a novena… porque ao oitavo copo já estavam totalmente rezados!
Na década de 40 do século passado, não havia freguesia micaelense isenta do pecado original da sua taberna: em São Roque havia adegas e tabernas que ficaram na memória, não só pela fama da sua vinhataria, mas também pela qualidade bacana dos magnos da “copofonia”!
Duas referências apenas: antes de ser conhecida por loja da “marequinhas do rosário“, a taberna do “Estrela da Manhã” gozava da fama de ser um dos poucos “oásis” de convivialidade dos militares continentais e insulares; foi a primeira taberna da freguesia a oferecer aos seus clientes uma ementa original: música radiofónica. Entre dois “quartilhos bem aferidos” e um par de torresmos de molho de fígado, as notícias da guerra eram ali escutadas com espantada e disciplinada curiosidade… Quando algum visitante já bem bebido arrotava a conhecida novidade de que a ilha estava pejada de espiões germânicos, havia logo alguém com voz de sargento-lateiro que ordenava ao taberneiro: – “Atina aí, Mariano! este bicho quer cerveja munique… bota-lhe aí um quartilho de “vin-de-chêro” para ele começar a falar açoreano…!
Por outro lado, um pouco mais a oeste da freguesia, havia o “Café Chouriço”, porventura a mais cosmopolita taberna da área. Havia algumas razões específicas para a sua imbatível popularidade: primeiro, a sua localização que coincidia com a vertente norte do morro junto ao ilhéu de São Roque; depois, a ausência de iluminação pública, o que oferecia garantia de anonimato aos seus respeitáveis frequentadores (a maioria estranhos à freguesia); finalmente, o aroma e a qualidade dos petiscos preparados pelo famoso Elias, considerado como a grande aposta do patrão, sô Jakim Miranda, negociante disciplinado oriundo de Água de Pau, o mesmo que anos mais tarde foi escolhido “by default” para regedor da freguesia. Tarde demais! Nessa altura, São Roque começara a ser o apêndice oriental de Ponta Delgada…
Ora para ajudar a perceber o curioso fenómeno do “Café Chouriço” nada como revisitar o perfil sociológico do meio-humano da época. Durante o período da II Grande Guerra, a zona do ilhéu de rosto-do-cão foi das primeiras do sul micaelense a ser seleccionada pela engenharia militar para a instalação de postos de vigilância anti-submarina. Alguns dos abrigos ainda lá estão para testemunhar os locais onde foram montadas peças de artilharia: ferramental bélico modesto, aliás de duvidosa eficácia defensiva. Alguns dos residentes mais astutos e lúcidos da época temiam que aqueles “brinquedos” servissem para ajudar os submarinos alemães a medir as coordenadas das posições defensivas, o que poderia eventualmente enfraquecer as condições de segurança duma zona densamente povoada…
Mas não é de “artilharia de costa” que nos propomos falar. Não seria novidade lembrar que, durante a década (1940-50), havia gente a fervilhar por toda a ilha. Aliás houve quem depressa compreendesse o fenómeno, e dele tirasse bom proveito…
A cerca de três quilómetros da cidade, o “Café Chouriço” era então um dos mais castiços “paraísos proibidos” das redondezas, não só pela consistência do seu ritual, como pela refinada qualidade da sua oferta: os “senhores-de-gravata” chegavam protegidos pela escuridão, fingindo-se atraídos pelo cheiro ímpar dos petiscos do sô Elias que, segundo os entendidos, sabia a valer do seu oficio…
Além do mais o “Café Chouriço” tinha fama de ter uma saída secreta nas traseiras do edificio para “acudir” alguma surpresa desagradável… Consta que sô Elias tinha sempre disponível o elegante “quarto-azul” onde a fidalguia da faina nocturna aguardava lhe fosse servida, no quarto “cor-de-rosa”, as apetitosas “petiscadas”… de carne tenra, coxas roliças, perfumadas, sobretudo obedientes ao paladar e à bolsa do misterioso cliente.
… Nessas coisas de moralidade pública, o pecado é sempre aquele “pobre-diabo” que afinal todos fingem não conhecer pessoalmente.
JLM
Rancho Mirage, Califórnia
Setembro/2006
Nota: Crônica enviada por e-mail em setembro de 2006.