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Este conteúdo fez parte do "Blogue Comunidades", que se encontra descontinuado. A publicação é da responsabilidade dos seus autores.
Imagem de “A pele porosa do silêncio” – Dora Nunes Gago
Comunidades 07 out, 2013, 01:05

“A pele porosa do silêncio” – Dora Nunes Gago



Jean Dominique Antony Metzinger (1883 – 1956)

A pele porosa do silêncio

Rita voltou a ligar o aspirador e contemplou, por instantes, o rasto perfumado que ia lavrando no soalho. Na pujança dos seus trinta e cinco anos, estava muito longe de ter a vida que sempre sonhara.
     Casara-se muito cedo, mal terminara o liceu, com o único namorado, o colega mais giro da turma do sétimo ano, que todas as raparigas cobiçavam. No início fora bom. Sentia-se invejada por todas quando passava de mãos dadas com o seu “príncipe”.
     Cumprira um dos seus mais caros desejos: ser mãe. A primeira filha, já adolescente, nascera-lhe no limiar da casa dos vinte, a outra, três anos depois. Às vezes, ao contemplá-las, sentia-se embevecida: carne da sua carne, sangue do seu sangue, que iam no meio das indecisões e das tempestades da adolescência convertendo-se em mulheres.
    O casamento acabara quinze anos depois. O “príncipe encantado” procurou outras “princesas”. Após duas traições e reconciliações, resolveu pôr um ponto final na história que não teria forçosamente o happy end almejado.
   Sonhara ser enfermeira, mas os caminhos trilhados na vida, conduziram-na a outro rumo. Começara a viver para as filhas que agora principiavam a ensaiar os primeiros voos. Agora, eram muitas vezes solitárias as suas noites, quando elas iam passar alguns dias com o pai, com os avós, ou saíam com os amigos.
    Ainda na plena força da vida, sentia-se envelhecida. Quando ficava sozinha, deitava-se ao anoitecer, para não se ter de confrontar com as recordações. Era estranho isso. As suas colegas, também divorciadas, arranjavam namorados com imensa facilidade. Iam construindo e desconstruindo relações, como Penélope tecia e destecia nos fios do seu tear. Ela ainda tivera um namorado, poucos meses a seguir ao divórcio. O ex-marido estava já casado de novo, fora entretanto viver uma temporada no estrangeiro e tinha mais um filho a caminho, o primeiro fora gerado no corpo daquela “outra”, quando ainda estava casado com ela e lhe devia fidelidade. “Amar e ser fiel até à morte, na doença e na saúde, na alegria e na tristeza…” Não era isso que se dizia nos casamentos?? Belíssima treta, era o que era. Nos tempos que corriam quem é que cumpria tão sacros votos? Talvez fosse melhor mudar a fórmula para “amar e ser fiel até que apareça alguém mais interessante nas redondezas e que me agrade mais…”
     A verdade é que cada vez mais as relações eram descartáveis, todas elas. Com a mesma facilidade com que se trocava de telemóvel de dois em dois meses, ou de carro todos os anos, trocava-se de marido, de mulher, de emprego, de amigos. A sociedade era composta por uma amálgama de vidas constantemente atiradas fora e sempre à procura de algo melhor, tentando manter o mito da eterna juventude: toda a gente tinha de ser bela, feliz e de preferência rica. No fundo, pareciam matilhas de chacais solitários, deambulando sem rumo pelo deserto gelado da vida.
Mas é verdade, pois, tivera um namorado durante dois meses. Rita sentiu-se profundamente despeitada ao saber que o ex-marido ia ser pai novamente: aquela criança a germinar no ventre de outra, quando devia antes ter florescido no seu, pois sempre quisera mais um filho. Por isso, a vingança mais adequada parecia-lhe aquela. Mas que vingança? Se o João já não a amava, se a cumprimentava indiferente e lhe sorriria cordialmente mesmo que a visse de mãos dadas com outro?
     A verdade, a mais pura e cruel realidade é que continuava a amar o ex-marido e esse amor doentio havia-a corroído por dentro, cobrindo tudo com o musgo da amargura como acontece com as casas arruinadas. Mais umas pedras soltas e o risco de derrocada seria eminente.
No entanto e apesar de tudo, gostava daquele trabalho no Lar da Terceira Idade. Sentia-se feliz por se poder dar àquela gente que habitava em reinos de memórias e que já pouco ou nada esperava da vida. De entre todos eles, tinha uma verdadeira adoração por Alice. A grandiosa mulher do mundo, a pintora sem limites, que continuava com a rebeldia e a força da adolescência, por vezes, também com a inocência e a candura de uma criança, que parecia ter um “olhar nítido como um girassol” como dizia Caeiro.
     Alice era a força e a juventude aos oitenta e cinco anos, Rita era uma anciã de trinta e cinco, derrotada e acabada. Dois pólos opostos que se atraíam numa fraterna e profunda amizade. Aquela senhora tão jovem era uma profunda lição de vida. Contudo, Rita não conseguia esquecer João. Queria arrancá-lo do peito, queimá-lo como a uma erva daninha, mas era incapaz.
     Sabia que nessa noite, na “pele porosa do silêncio”, como diria Eugénio de Andrade, sentiria mais uma vez aqueles passos ausentes e depois abraçaria o vazio na cama deserta, até que eu a iluminasse com o presente de um novo dia.

Dora Nunes Gago in A Oeste do Paraíso (adaptado), ed . Emooby, 2012

Dora Nunes Gago é professora de Literatura na Universidade de Macau (China), doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas. Foi leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai), professora do ensino secundário e investigadora de pós-doutoramento da FCT na Universidade de Aveiro.Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005;A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos, artigos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias.
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