A Perspectiva das Coisas, uma lição do Mestre
Coisas que não achava destino e nem lugar para guardar na nossa casa de Florianópolis e não querendo me desfazer delas fui levando para São Joaquim. Assim, lá na casa da fazenda, na Estância do Meio, fui depositando numa canastra de couro (espécie de baú) as fotografias da família, slides, cartões postais, velhas cartas, discos de vinil, cadernos meus e dos filhos, boletins escolares, livros, revistas e tantos outros papéis e lembranças arquivadas cada qual com sua história. Vez que outra resolvo abrir aqueles preciosos guardados e, entre a poeira e os paranhos, vou descobrindo meus pequenos tesouros esquecidos no sótão da velha casa. Como a pequena caixa de madeira de charutos cubanos cheia de moedas, uma iniciada coleção de selos, outra de flâmulas e de chaveiros. Ou, ainda, a caixa de sabonete Madeira do Oriente cheinha de santinhos, lembranças de primeira comunhão e o álbum de recordações com poemas e fotos de amigos da juventude. Leio seus nomes, visualizo suas caras. Deixo a minha memória trazê-los de volta com suas vozes e risadas partilhadas no Tubarão do meu ontem.
Coisas tão minhas e lembranças tão fortes que chego a ouvir os sons das vozes, das serenatas ao pé da janela, os acordes do rock na guitarra do Lúcio, o frenesi do baile de gala e as mil tentativas para acertar o passo da valsa A Bela Adormecida de Tchaikosvsky. Chego até a sentir a fragância do “Miss” da Dior e a maciez da lingerie de seda rosa-pêssego rendada usada pela primeira vez nos quinze anos da Maria Elisa. Respiro fundo, fecho os olhos, revisito tudo… Esta deambulada memorialista me fez lembrar uma frase do genial Millôr Fernandes (falecido dias atrás): “O tempo não existe. Só existe o passar do tempo.” No passar do tempo fui acumulando estórias e mais estórias agora puxadas para o presente como um balaio de siri, puxa um e os outros vem agarrados atrás.
Entre tantas coisas espalhadas no meio do tapete de Kilim e que começo a devolver ao baú das recordações está uma pequena pilha de revistas intituladas Mestres da Pintura. Relanceio o olhar rapidamente e deparo com uma gravura já esmaecida de uma pintura de Henri Matisse (1869-1954) estampada na capa de uma daquelas revistas editadas pela Abril nos anos sessenta. Ali, estava a belíssima Natureza-Morta, Ramo de Dálias e Livro Branco,1923,óleo sobre tela 50,2×61 cm, obra de arte que tanto me encantou quando visitei, em Novembro do ano passado, a exposição A Perspectiva das Coisas sobre o tema A Natureza-Morta na Europa (séculos XIX-XX) na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, na companhia dos amigos Hélia e Eduíno de Jesus.
Regressara dos Açores e estava em Lisboa por alguns dias para rever amigos. Lisboa emergia naquele Novembro com ares de outono-inverno reservando-me breves momentos de um sol tímido que iluminava e animava antigas fachadas, intensificava os verdes dos jardins e o cheiro da terra molhada. Por aqueles quadros de natureza viva cujo cenário é Lisboa, a velha cidade, cheguei à Fundação Calouste Gulbenkian de boléia com Eduíno de Jesus. Uma boléia que continuaria por dentro do Museu, numa visita guiada aos quadros de Natureza-Morta reunidos numa significativa mostra organizada por temas e disposta em doze núcleos da representação das “coisas” sob diferentes olhares ou perspectivas.
Não obedeci a nenhum roteiro prévio, segui o itinerário do Eduíno, e núcleo após núcleo bebi das suas explicações, mergulhei nas palavras do crítico de Arte e adentrei no labirinto de tanta cor e luz atenta a cada observação do amigo que mais parecia um farol do saber que iluminava o meu caminhar. Palavras sussurradas quase numa prece chamavam minha atenção às transformações sofridas pela natureza morta na modernidade, a reinvenção da forma por Paul Cézanne (1839-1906) e a sua insistência de que “para nós, a Natureza é mais profundidade do que superfície”. Reflexões sobre a nossa percepção da realidade das coisas. Comentários sobre a perspectiva das “tais coisas” no mundo em nosso redor. Avanços em direção aos pintores do confronto alternativo com a tradição acadêmica como fez Gustave Courbet. Recuos para mais um olhar à Natureza-Morta com Pote de Gengibre e Beringelas de Paul Cézanne. Faltou completar o título com a toalha estampada em azul à moda provençal onde estão as coisas, digo ao pé do ouvido de um Eduíno que sorri cavalheiro ante a minha observação. Espero que não tenha cometido nenhum sacrilégio ao Mestre Cézanne, afinal a toalha era apenas o cenário…
Estavam expostos nos salões do Museu da Gulbenkian pintores de grande referência, como Rembrandt, Goya, Léger, Manet, Renoir, Monet, Van Gogh, Gauguin, Cézanne, Picasso, Juan Gris, Salvador Dalí, Matisse, Magritte, Duchamp, Braque, Picasso. Incluía, ainda, os modernistas portugueses, Amadeo de Souza-Cardoso, Eduardo Viana e Mário Eloy e Maria Helena Vieira da Silva. Enfim, cerca de 70 artistas e 93 obras provenientes de museus, instituições e coleções privadas de todo mundo.
Eu me achava em estado de graça absoluta… Acabara de admirar a Édouard Manet e seu lindo Flores numa Jarra de Cristal, de uma transparência incrível e de tanta habilidade na materialização das coisas como o fez Chardin ou Eugéne Delacroix, e as maravilhosas e indescritíveis pinturas de flores transbordando em cores vibrantes e cheias de luz de Renoir, Claude Monet e, também, do holandês Vincent van Gogh numa deslumbrante exploração da Natureza, no repensar o espaço e no exprimir o sentimento humano nas suas fascinantes pinturas: Vaso de Girassóis de Monet, Ramo de Castanheira em Flor de Van Gogh, e o Vaso de Flores de Renoir (flores do campo, singelas como as flores de Maçanilha). Por Deus, que lindos!
O Cesto de Limões e Garrafa de Van Gogh permitia uma interpretação literária de sua linguagem drama (coisa e artista), enquanto a Natureza Morta com Leque de Gauguin misturava culturas ou remetia para o exótico Taití. Ou, ainda, as cenas de caça e o animal imolado representadas nas pinturas de Goya (Natureza-Morta com Lebres) e de Rembrandt (Pavoas Mortas) que tanto admirei sem um minuto sequer descansar os olhos daqueles jogos de luz e cores. Um verdadeiro festival para olhar nessa contínua mutação do gênero dentro da modernidade vencendo desafios revelados em obras inspiradas no Cubismo, Futurismo, Construtivismo e Surrealismo, visíveis em Magritte ou Picasso. Até tudo isso convergir no contemporâneo Nicholson que reverencia os valores tradicionais da natureza-morta. Na perspectiva das coisas, afinal a representação da sua realidade inconteste.
Andei por todos estes caminhos de admiração e reflexão em atitude de aluna de olhos arregalados, os sentidos aguçados e vitaminada pelas palavras do mestre.
As horas passavam e nós seguíamos em passos lentos que bem lembravam o ritual da via-sacra. E era mesmo um circuito sagrado, mágico, fascinante que fui adentrando encantada pelas mãos do Eduíno e da boa Hélia que a tudo acompanhava ora ao nosso lado, ora mais à frente nos aguardando pacientemente.
Estar ali na companhia do Eduíno era mesmo um privilégio e eu não cabia em mim de tanto contentamento. E vi que muitas pessoas que visitavam a exposição começaram a perceber que “aquele simpático senhor” sabia tudo e foram se chegando de mansinho. Teve mesmo um grupo de jovens estudantes que deixaram a professora falando sozinha e se viraram acintosamente para escutá-lo em respeitosa admiração.
Comecei a rir deliciada da cara de espanto do querido amigo. Sua figura pequena agigantou-se, sua aura brilhou. Me emocionei. Amei estar ali vivendo aquele momento único. Só não digo que foi coisa do Divino. Não foi, não. Pois, Divino estava sendo o próprio Eduíno em sua lição de mestre naquele périplo por entre pintores e suas célebres obras.
Em verda
de, uma tarde tão maravilhosamente vivenciada bem que poderia ter um dedinho de São Martinho, afinal era seu dia.
Naquela noite, na Casa dos Açores de Lisboa, no Magusto de São Martinho, relembramos a monumental exposição em companhia de amigos que também bebiam as sábias palavras de Eduíno de Jesus. Um dia como esse só poderia terminar assim: com as lições do mestre num Magusto de São Martinho a ouvir tocar o guitarrista micaelense José Pracana.
Lélia Pereira da Silva Nunes
Abril, 2012.