Da Espanha, Universidade de Salamanca, a minha colega Professora Doutora Rebeca Hernández, tradutora de várias obras do escritor açoriano João de Melo -residente em Madrid-, escreve para o Comunidades o texto que aqui publicamos e que se intitula ” A poética da paisagem em dois contos de João de Melo: Um percurso estético do Arquipélago dos Açores”. Antes, porém, seguem-se alguns dados biobibliográficos sobre a Professora Hernández.
Rebeca Hernández é professora na Área de Galego e Português da Universidade de Salamanca e doutorada em Filologia Portuguesa por esta mesma instituição. Algumas das suas áreas de investigação são: literatura pós-colonial de língua portuguesa, tradução de textos literários pós-coloniais de língua portuguesa, ética traductológica, linguística cognitiva, coerência do discurso na tradução de textos literários plurilingues e tradução literária. É autora do livro Traducción y postcolonialismo: procesos culturales y lingüísticos en la narrativa postcolonial de lengua portuguesa (Granada: Comares, 2007) e tem artigos publicados em diversas revistas especializadas nacionais e internacionais. Faz parte do conselho de redacção da revista Estudios Portugueses. Revista de Filología Portuguesa da Universidade de Salamanca. Pertence aos Grupos de Investigação Reconhecidos (GIR) da Universidade de Salamanca “CoDis (Coherencia del Discurso)” e “Discursos y Poética de la (Post)Modernidad” e participa no projecto de investigação “La poética de la brevedad: Imagen y palabra. Interacción entre la poesía y las artes visuales”. Dedica-se também à tradução literária, tendo traduzido para espanhol obras de João de Melo, Luís Bernardo Honwana, Manuel Alegre e Hugo Milhanas Machado.
— — — — — — — — — — —
A poética da paisagem em dois contos de João de Melo: Um percurso estético pelo Arquipélago dos Açores
Lembro-me do funcho e do feto e também de outros nomes:
a criptoméria, o vinhático, o ulmeiro e araucária. Sobretudo a criptoméria.
Não conhecem a criptoméria? É indispensável que vos fale dela.
Mas eis aí o espanto, o esforço de quem há-de tentar descrever
a nobreza e a maravilha desta árvore. Esguardai pois como se fôsseis presentes.
João de Melo, Do princípio e da Agua
À maneira de Fernão Lopes, João de Melo ergue-se como cronista do arquipélago dos Açores assentando as coordenadas de uma poética que se desenvolverá ao longo dos seus romances e dos seus contos e, como se fôssemos presentes, partilha com os leitores as experiências das Ilhas. Ao longo de toda a sua produção narrativa, o projecto estético do escritor português tem-se visto sustentado por uma língua concebida como matéria artística primária, capaz de forjar uma malha que o leitor percebe como física e tangível. Em termos de geografia literária, a narrativa de João de Melo tem desenhado uma cartografia íntima dos Açores.
Dissemos, nalgum outro lugar, que a língua para João de Melo tem um carácter orgânico, porquanto a sua prosa, poderosamente esculpida, se torna vital por conseguir activar fortemente a memória sensorial do leitor, através da adjectivação e da construção de abundantes imagens.
Dentro da obra de João de Melo podemos distinguir um ciclo fortemente ligado ao mundo açoriano, fomado pelos romances O Meu Mundo não é deste Reino e Gente Feliz com Lágrimas, pelo livro de viagens Açores, o Segredo das Ilhas, pela novela “A Divina Miséria” (In Entre Pássaro e Anjo), e pelos contos “Do Homem na Idade dos Corais”, “Do Princípio e da Água” (In Bem-Aventuranças), “Regresso a casa” e “Movimento de Partida” (In As Coisas de Alma) e uma série de crónicas no Dicionário de Paixões (“Açores I”, “Açores II”, “Criptoméria”, “Ilha: A Infância Eterna”, “Ilhas: as suas vozes”, “A língua portuguesa”, “Paixão açoriana, digo, portuguesa”). Exceptuando as crónicas e o livro de viagens e falando exclusivamente das obras de ficção, os textos citados oferecem ao leitor um retrato por vezes mítico e por vezes realista do arquipélago e, de um ponto de vista meramente sensorial, parece-nos que recebemos através destas leituras duas visões diferentes das ilhas: uma mais escura, e outra cheia de luminosidade. A vertente mais escura vem representada pela trilogia rozarense que formam O Meu Mundo não é deste Reino, “A Divina Miséria” e “Do Homem na Idade dos Corais” e por Gente Feliz com Lágrimas, e “Movimento de Partida”. Estes cinco textos retratam de forma mítica (no caso das três primeiras obras) e realista (as duas últimas) a vida no Arquipélago de uma perspectiva interior, descrevendo um tempo insular ligado ao crescimento pessoal e marcado pela religião, pela família, pela emigração e o consequente despovoamento. O retrato mais luminoso está formado pelos contos “Do Princípio e da Água” e “Algo como um regresso a casa” que formam um mapa de imagens dos Açores que se concretiza na mente do leitor.
Interessa-nos neste pequeno ensaio fazer um percurso pelos contos “Do Princípio e da Água” e “Algo como um regresso a casa”, nos quais, o leitor viaja, através dos sentidos, aos Açores com os protagonistas das narrações. Os textos que estamos a comentar retratam duas viagens de dois casais recém-casados, e as vozes narrativas realizam uma visita física e sensorial pelas ilhas, partilhando a experiência insular com os antagonistas, que nunca antes estiveram nas ilhas e preparam o leitor para o conhecimento do arquipélago através do encantamento.
(cont…)